Geração E

O passaporte está obsoleto? “Este é o primeiro sistema que temos de redefinir, porque não está a funcionar para nenhuma economia”

Karoli Hindriks, CEO da Jobbatical
Karoli Hindriks, CEO da Jobbatical
Erlend Staub

Em entrevista ao Expresso, a líder executiva da plataforma de realocação de talento Jobbatical defende que é urgente repensar o funcionamento das fronteiras. Karoli Hindriks defende que, com ajuda da tecnologia, é possível “maximizar a eficiência” com que deixamos entrar “as pessoas que queremos deixar entrar” e que precisamos na nossa economia

O acidente do nosso nascimento define muito do que vai ser a nossa vida. No caso dos portugueses, dá acesso ao sexto passaporte mais forte do mundo. Com este documento é possível viajar sem visto para 188 países, contabiliza o Henley Passport Index de 2023.

Mas porque funcionam as nossas fronteiras assim? Porque é o passaporte português mais forte do que o norte-americano e o chinês, mas mais fraco que o japonês e o espanhol? Será esta a forma mais eficiente de gerir o nosso mundo? A que nos permite criar mais riqueza?

Karoli Hindriks acredita que não.

“Usamos o passaporte como a verdade sagrada. Algo que temos nas nossas mãos quando atravessamos fronteiras e que acreditamos ser a forma de atravessar fronteiras. Mas o passaporte, e a forma como o sistema foi criado, remonta ao pós-Primeira Guerra Mundial no Ocidente. Portanto, se um passaporte nos permite viajar com facilidade ou não, foi definido há um século. E essas são as mesmas regras que se aplicam hoje em dia.”

Nascida na Estónia ainda durante o domínio soviético, Karoli Hindriks teve aos 17 anos (menos de uma década depois da queda do muro de Berlim) a oportunidade de fazer um intercâmbio nos EUA. Passar do que considera ter sido uma “prisão de conhecimento” para uma experiência que tanto lhe “abriu os olhos” fê-la apaixonar-se por este tema.

Em 2014, fundou a Jobbatical. “Começamos como uma plataforma de recrutamento, mas em 2019 mudamos completamente a empresa. Estávamos a ajudar os nossos clientes a contratar no estrangeiro, mas o que nos diziam é que o maior problema de contratar internacionalmente não era realmente contratar, mas antes trazer as pessoas para os países.”

Hoje desenvolvem tecnologia que facilita e automatiza o processo de emigração. Grandes empresas tecnológicas contratam-nos para gerirem os processos de relocalização das novas contratações internacionais. Estão presentes em 23 países e planeiam expandir “para muitos mais” nos dois próximos anos.

A sua carreira levou-a a uma conclusão: o sistema está obsoleto. “Quando definimos como e porque é que deixamos alguém entrar, penso que o passaporte é o primeiro sistema que temos de redefinir”, defende a CEO. “Porque não está funcionar para nenhuma economia. Não está a funcionar para Portugal, para a Alemanha, para a Estónia. E também não está a funcionar para as empresas nesses países, nem para o talento (pessoas), que está a ser discriminado embora não o devesse ser.”

O economista Michael Clemens estima que abrir as fronteiras aos trabalhadores poderia duplicar o PIB mundial. Isto quando o World Economic Forum reconhece o capital humano como um “fator-chave para a prosperidade e produtividade económica”.

Se assim é, porque continuamos tão agarrados ao status quo?

A equipa fundadora da Jobbatical: Ronald Hindriks, Karoli Hindriks e Ankur Agarwal (da esquerda para a direita)
Erlend Staub

Um sistema com falhas desde a origem que prejudica até aqueles que devia beneficiar

Para responder a esta questão, importa perceber o contexto em que surgiu o passaporte moderno. O documento foi introduzido como elemento essencial às viagens internacionais pelas nações ocidentais durante a década de 1920, quando estes países tentavam gerir as consequências do pós-guerra.

Mais especificamente, os EUA estavam a braços com um enorme fluxo migratório e queriam evitar receber demasiados migrantes de países que fossem uma ameaça “ao ideal de hegemonia americana”, explicitava a Lei da Imigração aprovada em 1924. “A América deve permanecer americana”, defendeu o Presidente Calvin Coolidge na assinatura desta legislação, que pôs fim a um período em que a entrada nos EUA podia ser feita praticamente sem restrições.

O sistema é, assim, uma solução arbitrária, centrada no Ocidente e discriminatória, desenhada para potenciar a liberdade dos cidadãos de certos países e limitar a de outros. “Nessa altura, a crença era a de que os países ocidentais eram altamente qualificados e o resto do mundo não”, afirma Karoli Hindriks.

Hoje, a conjuntura mudou e o sistema está a prejudicar os próprios países que foi concebido para beneficiar. “Se olharmos para onde vêm os migrantes mais qualificados hoje, então o top três não tem nada a ver com o Ocidente. São a Índia, China e Filipinas. Isto embora os seus passaportes digam logo à partida que estes não são bons países para deixar entrar no nosso país.”

No Henley Passport Index de 2023, estão respectivamente em 82.º, 64.º e 76.º no ranking dos passaportes mais fortes. “Há uma enorme divergência em termos do que o mercado precisa hoje”, conclui Karoli Hindriks.

Quando vivemos “a maior escassez de talento da História humana”, as barreiras à entrada afastam ainda mais o talento. “Isto não é apenas um sistema ineficaz e um pedaço de burocracia inofensivo. É trabalhar ativamente contra o próprio”, defendia Karoli Hindriks na sua TED Talk em 2021. “O passaporte foi criado como o mecanismo para o movimento. É claramente tempo de modernizar esse mecanismo.”

Em entrevista ao Expresso acrescenta: “não estou a dizer que a entrada deve ser permitida a toda a gente, mas a tecnologia permite-nos maximizar a eficiência, para que as pessoas que queremos deixar entrar possam entrar da forma mais eficiente.”

Percepções tecnológicas, a lentidão do setor público e as “fronteiras da mente”

Nas suas apresentações, Karoli Hindriks fala frequentemente no seu país natal como um exemplo de digitalização, onde votar, preencher a papelada dos impostos ou receber receitas médicas está à distância de alguns cliques. “Na Estónia, as pessoas ficam frustradas com qualquer serviço público que demore mais de dez minutos, porque tudo funciona de forma tão invisível e integrada.”

Se tudo isto é possível e funciona, que barreiras estão, então, a atrasar a transformação digital noutros países? “A minha honesta opinião é a de que não é sobre a tecnologia, porque essa existe. Não é sobre o dinheiro, porque estamos a perder muito mais com a eficiência que não temos. É uma questão de conhecimento e abertura para realmente nos adaptarmos à mudança”, afirma a líder executiva da Jobbatical.

Por um lado, há uma “falta de compreensão no acompanhar o que é realmente possível” do ponto de vista tecnológico. “Um dos principais argumentos [usados contra a digitalização] é a questão da segurança. Mas se começarmos a analisar, o papel é muito menos seguro, principalmente se olharmos para todo o investimento que está a ser feito em cibersegurança. Se percebermos que ter um monte de papel na secretária [é muito menos seguro] do que ter um enorme programa de segurança em torno de uma plataforma digital, então já não há argumento.”

Por outro lado, a CEO da Jobbatical identifica um outro “problema”. “O setor privado está a mexer-se e a adaptar-se à mudança real no mundo mais rapidamente do que o setor público”, que “não está a consegui-lo de forma suficientemente rápida”.

“Acredito mesmo que o nosso setor público é demasiado cuidadoso. Uma das coisas que vimos durante a pandemia foi que até os cientistas avançaram mais rapidamente com alguns projetos porque havia [uma urgência] na tentativa. E essa era uma das minhas esperanças, que esta mentalidade de falhar rapidamente entrasse mais no setor público. Porque não podemos só ficar acostumados a como as coisas costumavam ser, porque costumavam funcionar há um século. O mundo está tão diferente do que era há um século.”

Nesta equação, há ainda mais um fator a equacionar: os preconceitos a que chama “fronteiras da mente”. “O problema é que isto iria implicar realmente abrir as nossas mentes e largar a ideia de que a identidade nacional” como “a identidade que me permite consumir uma série de serviços”.

“Algumas pessoas pensam que vão perder a identidade. Muitas das reações políticas que estamos a ver devem-se ao medo de que se a mudança acontecer e nos sentirmos mais ligados ao mundo, então perdemos a nossa identidade coletiva”, elabora.

“Mas eu acho que podemos ter várias identidades. Não estamos limitados a uma só. O facto de se poder sentir conectado comigo, porque ambos acreditamos num mundo globalizado, não significa que está menos ligado aos seus concidadãos portugueses. As pessoas precisam de comunidades. Isso não vai mudar. Talvez as comunidades em si mudem, mas acredito que o que isto realmente faz às pessoas é tornar tudo tão mais possível.”

Onde fica Portugal no meio disto tudo?

Mesmo com todas estas resistências, Karoli Hindriks está convicta de que este processo é inevitável.

“Creio que a mudança vai acontecer, porque um a um, os países mais rápidos vão fazê-lo e outros irão segui-los ou serão deixados para trás. É a forma como nós humanos funcionamos. Se houver uma fila, vamos meter-nos nela. É o mesmo com os países. Se virem que algum que fez lhes deu uma vantagem, outros vão seguir.”

E argumenta referindo um caso prático. “Para mim e para a minha equipa, o exemplo mais engraçado é o dos vistos para nómadas digitais. Nós estivemos por detrás do primeiro. Apresentamos a ideia ao governo estónio em 2018 e o parlamento aprovou-o em 2020. Fizemo-lo porque havia uma lacuna na lei. Não havia forma de apoiar este novo tipo de trabalhadores que chegam a um país sem um empregador nesse país. Agora, outros países estão a seguir-se, incluindo Portugal.”

A Jobbatical entrou no mercado português há um ano. “Em três meses, a nossa receita cresceu seis vezes. Até agora fizemos cerca de 400 relocalizações para Portugal.” E têm uma lista de mais de 50 clientes, incluindo a EPAM, Bolt, Pipedrive, Leroy Merlin e Devoteam.

“O que estamos a ver é que há muito interesse por parte das empresas quanto a criar os seus hubs ou sedearem-se [em Portugal]. E há movimento individual. Acredito que o visto para nómadas digitais, que é bastante recente, irá também inspirar isso.”

E prevê que a tendência será para a “diversificação das localizações para as quais as pessoas se estão a mudar”. “Maioritariamente, ainda vemos Lisboa e Porto como os principais destinos, mas a minha equipa mencionou que há mais e mais pedidos para Aveiro, por exemplo. Locais mais pequenos estão a tornar-se novos hotspots e creio que o visto para nómadas digitais vai afetar isso.

Há contudo um senão que poderá travar todo este potencial. “Quando vemos tudo o resto… o clima, o estilo de vida, a qualidade do ar, escolas internacionais… Portugal está bem qualificado nas coisas que as pessoas gostam de ter quando se mudam para um país. Por isso é que sublinho que Portugal podia mesmo ser o Silicon Valley da Europa com todas essas coisas combinadas, mas o principal problema é mesmo a burocracia.”

“Existem alguns formulários online, mas mesmo com esses, é pedido que as pessoas os imprimam e levem às embaixadas ou enviem por correio. O movimento digital de informação não é aceite de todo. Esse é o principal problema.”

E dá um exemplo recente. “Quando queremos candidatar-nos a um visto de trabalho em Portugal temos de fazer uma marcação. Para fazer essa marcação temos de ligar para um número. Não é possível fazer online, mas esse número nunca atende, porque está tão sobrecarregado com chamadas. A 17 de outubro [de 2022], o SEF recebeu 29 milhões de tentativas de chamadas em 12 horas [noticiou o DN]. Imagine-se! Alguém tem de atender o telefone num mundo onde tudo é digital.”

Por isso, deixa um alerta. “A entrada está tão afunilada que as empresas não conseguem contratar. O governo precisa mesmo de acelerar e melhorar, porque os outros países estão a fazê-lo mais rapidamente" e a oportunidade de o país se estabelecer como o Silicon Valley da Europa pode ser perdida.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: calmeida@expresso.impresa.pt

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