6 março 2011 10:00
6 março 2011 10:00
Em 1973, tinha sete anos, andava na 2ª classe na escola oficial e usava bata branca. Não sabia o que era a ditadura, sequer a Ala Liberal e Salazar era o nome dado ao objeto para rapar a massa de pão-de-ló. Mas via, diariamente, as fotografias dos dirigentes políticos de então: Marcello Caetano e Américo Tomás. Tais molduras com as figuras do Estado tinham a separá-las um crucifixo simples de madeira, e por baixo lá estava o imponente quadro preto de ardósia.
Um certo dia de 1974, cheguei à escola e logo me mandaram de volta para casa. Nos dias que se seguiram, as fotografias emolduradas dos dois homens tinham desaparecido da sala de aula, tendo o crucifixo permanecido intocável e imóvel. Mais tarde, percebi que esta foi das primeiras memórias que retive da revolução.
Os primeiros recortes
(...) Nos anos 80, o Expresso passou a acompanhar-me nas mesas de café e na faculdade. Aos sábados de manhã, e semana após semana, foram-se sucedendo expressos e mais expressos, postos em cestas de vime ou amontoados em cantos estratégicos da casa. Foram recortados e guardados em pastas e dossiês, para preservação de memórias, artigos de opinião, notícias e cartoons do António.
Lembro as edições sobre as eleições presidenciais portuguesas, uma edição de 1989 com a comemoração dos 200 anos da Revolução Francesa, outra com a revolução que foi nesse mesmo ano a queda do Muro de Berlim e tantas e tantas outras dobradas, arquivadas ou deitadas fora em dias de arrumações in extremis. Sacos foram despejados e prateleiras esvaziadas. Com sentido ecológico, mas com alguma dor de alma, foram sendo deitados muitos montes de papel no contentor azul do papelão.
O problema do arquivo
Dia após dia, o Expresso e os seus cadernos e suplementos foram uma espécie de naperon que se punha e tirava na mesa da sala de jantar. No verão, as folhas esvoaçavam na praia e enchiam-se de areia, de rasgões e de rugas, em concordância com a toalha de praia. No inverno, as páginas foram ganhando a moleza da humidade própria dos dias chuvosos e frios.
Durante anos, procurei o Expresso nos quiosques, nas tabacarias, nas áreas de serviço. Com 1.58m de altura e sempre num esbracejar constante quando do formato king size antigo, congratulei-me, leitora de pequena estatura, com o renovado tamanho, premiado grafismo e com a edição on line.
Com 2000 edições publicadas e a caminho dos quarenta anos de existência, continuarei a ter de me desfazer de expressos amontoados por toda a casa. A fidelidade ao jornal permanece. Tal como o quadro de ardósia vê chegar o quadro interativo, tal como já não visto bata branca, sei quem foi Salazar e que Francisco Sá Carneiro e Francisco Pinto Balsemão estiveram na Assembleia Nacional, tal como o Expresso de pasta de celulose vê chegar a folha digital, tal como vejo o Expresso da Meia-Noite com mangas de camisa e com papillon, continuarei a arbitrar a luta pelo espaço vital entre o Expresso, uma chávena de café e uma fatia de pão-de-ló.
Margarida Cunha
Loures
- A opinião dos leitores
- Um apoio na vida pessoal e profissional, por Almor Serra
- O Expresso só à 2ª (ou mesmo à 3ª de manhã), por Santiago Macias
- Velhos problemas muito atuais, por Raul da Silva Pereira
- Saudades de outros tempos, por João Bernardo Lopes
- Uma pedrada no charco, por João Pinto
- O medo de contar verdades incómodas, por António Silva Carvalho
- Leitura com música, por José Rodrigues Franco
- Três ou quatro semanas de costas voltadas, por José N. Celorico
- Em busca do humor, por Maria José Azevedo
- 'Conselhos' do Expresso para negócios de família, por José Manuel Bastos