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"Temos um grande poder em mãos que não sabemos usar": os nossos dados geram um valor incalculável e está na altura de o redistribuir

"Temos um grande poder em mãos que não sabemos usar": os nossos dados geram um valor incalculável e está na altura de o redistribuir
DADO RUVIC/REUTERS

A Web Summit voltou a trazer aos seus palcos ideias revolucionárias, como arte criada por inteligência artificial, ou realidade aumentada que poderá vir a salvar vidas. Mas há uma coisa sobre a qual assenta toda esta futurologia: os nossos dados. São uma autêntica matéria-prima, com um valor incalculável para a economia digital e sobre a qual “temos um grande poder que não sabemos usar”. Leia a entrevista com Marco Scialdone, chefe do departamento de contencioso da Euroconsumers, a multinacional que detém várias organizações de consumidores por todo o mundo, incluindo a Deco Proteste

No pavilhão número cinco da Feira Internacional de Lisboa (FIL), transformada pela Web Summit, há um stand que passa despercebido. Duas hospedeiras vão distribuindo panfletos, mas os cartazes são discretos e o nome da empresa, Euroconsumers, é visível apenas para quem se aproxima. Por trás do balcão, pode ler-se o slogan “My Data is Mine” (os meus dados são meus, em português), uma campanha lançada em 2017 com a simples ideia de que o valor gerado pelos nossos dados tem de ser redistribuído. À época, era um “autêntico sacrilégio” pensar assim, diz Marco Scialdone, que na Euroconsumers é chefe do departamento de contencioso e que aceitou explicar em entrevista de que forma podemos redistribuir o valor gerado pelos nossos dados.

Numa grande conversa com o Expresso, Marco diz que o consumidor “tem em mãos um grande poder que não sabe usar”. Apesar de dispensar abordagens paternalistas, confessa que é preciso falar-se mais sobre isto: “os consumidores não estão suficientemente conscientes de que os seus dados têm um valor e que esse valor pode e deve ser controlado por eles”.

Qual é o problema com os dados dos consumidores que tornou esta uma das grandes missões da Euroconsumers?
Em 2017 fizemos uma campanha chamada “My Data is Mine” (Os meus dados são meus, em tradução livre para português), porque, na altura, queríamos alertar para o facto de que os dados não são apenas um direito fundamental, são também um ativo económico. Se queremos encontrar um equilíbrio nesta economia digital, temos de pôr os consumidores no centro da ação. Há cinco anos, quando lançámos esta campanha, a ideia de que o valor gerado pelos nossos dados deve ser redistribuído pelo consumidor e pela economia era um verdadeiro sacrilégio.

Quer isso dizer que, no futuro, o consumidor poderá vir a ter mais poder sobre os seus dados. Iremos receber dinheiro de empresas como a Meta, ou a Google, por exemplo, pela utilização que fazem da nossa informação?
Não. Aquilo em que nós acreditamos é que deveria haver entidades intermediárias - que poderiam ou não ser as próprias organizações de direitos de consumidores -, que funcionassem como corretores de dados. Que agregassem informação e fizessem a ligação entre a oferta e a procura. Por exemplo, sempre que o utilizador fizesse download de uma aplicação como o Instagram, em vez de fornecer os seus dados à Meta, forneceria ao corretor de dados, que posteriormente licenciaria esses dados para fins específicos, como a publicidade.

As tecnológicas exploram os dados dos seus utilizadores e nós acreditamos que tem de existir aquilo a que chamamos um “retorno digital”. Isto parece um pouco ingénuo, mas se considerarmos o valor que estes dados geram, é claro que o consumidor tem de receber algo em troca por fornecer aquilo que, no fundo, é uma matéria prima.

Mas fornecer os nossos dados em troca de serviços já é o que acontece na prática…
Sim, mas esses serviços podem ser melhorados, oferecendo mais funcionalidades ou reduzindo a quantidade de dados utilizados. Se pensarmos na informação como dinheiro, no fundo estaríamos a pagar menos por mais e melhores serviços. Esta é a minha visão. A situação que temos atualmente é muito bem descrita por Yuval Noah Harari, no seu livro “21 lições para o século 21”, quando diz que “as pessoas estão contentes por fornecerem o seu recurso mais valioso - dados pessoais - em troca de um email ou de vídeos de gatinhos. Tal como os povos africanos e os povos nativos da América ficaram contentes por trocar grandes quantidades de território por colares coloridos”. Se o consumidor estivesse ciente do valor económico dos seus dados, poderia exigir mais da indústria.

Estamos basicamente a falar de redistribuição de riqueza, é isso?
Sim. E este retorno digital não tem de ser necessariamente monetário, pode significar apenas acesso a melhores serviços. As grandes tecnológicas recolhem os nossos dados e em troca oferecem um serviço, o que é absolutamente legítimo. O que é importante é que o consumidor tenha controle sobre a informação que está a fornecer e que possa escolher de que forma ela é tratada e o uso que lhe é dado. Neste momento, isto ainda é bastante confuso para o público em geral. É por isso que nós lutamos para afirmar que os dados pertencem ao consumidor. Os meus dados são meus. E, claro, isto não invalida que o consumidor ainda assim escolha fornecer os seus dados em troca de serviços.

À esquerda, Marco Scialdone, professor e chefe do departamento de contencioso, e, à direita, Marco Pierani, chefe do departamento de relações públicas
Nuno Botelho

"Eu acho que os consumidores ainda não estão suficientemente conscientes de que os seus dados têm um valor e que esse valor pode e deve ser controlado por eles"

Em que ponto está a legislação na União Europeia no que respeita aos dados do consumidor?
Temos o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, de 2016. Esta é a maior legislação e a principal, mas temos legislação mais recente, como o regulamento da Governação de Dados, adotado pelo Parlamento Europeu a partir de abril deste ano, que já vem criar um quadro legal para estes tais corretores de dados de que falámos anteriormente, e ainda temos um memorando que deve estar para breve. Esta legislação mais recente já está mais focada nos dados como um ativo económico, na sua partilha e no seu papel na economia da União Europeia. Em 2016, estivemos focados nos dados como um direito fundamental, agora, estamos focados nos dados como uma parte fundamental da economia.

No vosso site falam no impacto de casos como o da Cambridge Analytica. Na altura, tomaram várias posições públicas sobre o assunto e exigiram inclusivamente respostas por parte do Facebook que nunca obtiveram…
Sim, na altura entrámos com quatro ações coletivas dentro dos assuntos que cabiam na nossa jurisdição e dirigimos ao Facebook três grandes questões para as quais, de facto, nunca obtivemos resposta: 1) de que forma iriam indemnizar os consumidores que viram os seus dados serem utilizados indevidamente no caso Cambridge Analytica; 2) de que forma iriam fazê-lo dali para a frente com outros casos que viessem a surgir e 3) que ferramentas iria o Facebook dar aos seus utilizadores para gerirem os seus próprios dados.

Sendo completamente honesto e transparente consigo, o problema a este nível está no facto de ser praticamente impossível provar em tribunal que o utilizador é prejudicado ou sofreu algum dano moral ou físico em casos de violação da proteção de dados. Ou seja, saber quanto é que essa violação custou ao utilizador. Na Europa, não temos um instrumento legal muito usado nos EUA, que são os danos punitivos, o que é bastante limitativo em termos de ações que podemos levar a tribunal. Na altura, com estas quatro ações coletivas, o que tentámos fazer foi consciencializar a opinião pública para este tema e penso que chegámos a uma audiência bastante mais alargada e estimulámos um debate sobre o valor dos dados que foi bastante interessante.

Ainda há muito a fazer. Quanto maiores são estas empresas, mais problemas podem gerar ao usar os nossos dados. Mas acho que hoje estamos numa posição melhor do que aquela em que estávamos há cinco anos, porque as próprias plataformas também já começam a perceber que vão ter de ceder aos utilizadores um maior controlo sobre a sua informação. A Meta, a Google e a Amazon já oferecem ferramentas que permitem verificar que dados estão a ser usados, por exemplo, para publicidade.

É por aí que temos de ir. Temos de caminhar na direção em que os consumidores escolhem qual o uso que pode ser feito dos seus dados a qualquer momento. Se decidirem que não querem mais que os seus dados sejam utilizados por uma determinada plataforma, podem simplesmente apagá-los ou transferi-los com um clique.

É como David e Golias. O pequeno utilizador contra a gigante tecnológica…
Sim, mas penso que é do interesse das gigantes tecnológicas terem uma abordagem à proteção de dados que ponha o utilizador no centro da ação, porque esses são basicamente os seus clientes. E só os fidelizam se oferecerem melhores serviços e um maior controle sobre os seus dados. É do interesse destas empresas que haja uma economia sustentável e alicerçada numa forte política de proteção de dados.

E os consumidores estão suficientemente conscientes disto tudo?
Esse é o grande problema. Eu acho que os consumidores ainda não estão suficientemente conscientes de que os seus dados têm um valor e que esse valor pode e deve ser controlado por eles. E penso que devemos evitar uma abordagem paternalista ao tema. Somos nós que temos de tomar conta dos nossos dados. Antes de clicarmos “sim” ou “não”, temos de ler, pensar e considerar. E, claro, temos de exigir às empresas que sejam transparentes e forneçam informação que facilite essa compreensão dos direitos do consumidor. Temos de estar conscientes de que os dados são o grande motor desta nova economia e de que temos um grande poder em mãos que não sabemos usar.

Marco Scialdone na entrega dos prémios "My Data is Mine", durante a Websummit
NUNO BOTELHO

"Se perdermos este modelo, vamos voltar a caminhar no sentido de ter menos serviços por um custo mais elevado e acho que ninguém quer isso."

Mas isso é um problema, porque hoje qualquer aplicação pede dados em troca do serviço que oferece e é irrealista pensar que os utilizadores vão ler os termos e condições de tudo o que instalam. Como é que se contorna isso?
Completamente. Temos de providenciar ferramentas que tornem imediata essa compreensão, por exemplo, como fazemos nos rótulos dos alimentos. Quando compramos um alimento no supermercado, podemos ver se tem muito açúcar ou muita gordura. Podemos imaginar algo semelhante para os dados que as aplicações usam: um rótulo na Play Store ou na App Store em que uma aplicação que consuma muita informação seja catalogada como E, e uma aplicação que respeite os nossos dados seja catalogada como A. Podemos trabalhar com as tecnológicas para que possam fornecer voluntariamente esse rótulo. Ainda estamos muito longe de chegar a este nível de consciencialização por parte do consumidor, mas estamos cá a trabalhar para isso.

E já têm essa ferramenta? Estão a trabalhar nela?
Estamos a trabalhar de perto com empresas como a Google para promovermos esse ambiente de escrutínio por parte do utilizador, por exemplo, na Play Store, mas também na forma como a própria Google leva o leitor a inteirar-se de que tipo de informações está a fornecer para fins publicitários. Antes de haver legislação neste sentido, tem de se criar um ambiente em que estas empresas voluntariamente forneçam essas ferramentas. Muitas coisas, antes de se tornarem lei, partem de uma tradição de regulação voluntária. Isto é muito importante. Vimos isto acontecer com as empresas de telecomunicações e podemos fazer o mesmo com a proteção de dados.

Em suma, temos de mudar a forma como utilizadores e empresas tecnológicas se relacionam, equilibrar a balança e redistribuir a riqueza.
Absolutamente. A economia que construímos nos últimos 20 anos é baseada em dados. Honestamente, eu não sinto saudades da economia antiga. Sou velho o suficiente para me lembrar do que era a internet quando tínhamos de pagar para ter um email. É claro que todos os serviços que temos agora vêm da exploração dos dados dos utilizadores, e para ultrapassarmos esse problema temos de criar ferramentas novas para os consumidores para que não se sintam excluídos e dissociados. Só assim poderemos salvaguardar este modelo económico que se criou e que tem estado a resultar até certo ponto. Se perdermos este modelo, vamos voltar a caminhar no sentido de ter menos serviços por um custo mais elevado e acho que ninguém quer isso.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: rtpereira@impresa.pt

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