Economia

Carlos Mamede: “Há uma enorme opacidade na gestão da ADSE”

28 junho 2019 17:40

pedro nunes

Os beneficiários da ADSE não sabem o que se passa dentro da casa à qual pagam cerca de 600 milhões de euros por ano, denuncia Carlos Mamede, presidente da Associação 30 de Julho. Há sete meses que pedem para reunir com o Conselho Diretivo e, até hoje, não obtiveram qualquer resposta

28 junho 2019 17:40

O presidente da Associação 30 de Julho, que representa beneficiários da ADSE, Carlos Mamede, denuncia a “enorme opacidade” da gestão atual do subsistema de saúde dos funcionários públicos, que é financiado em exclusivo pelos trabalhadores do Estado (no ativo ou reformados) através de um desconto de 3,5% nos seus rendimentos brutos.

Desde Outubro de 2018, quando a ADSE mudou de direção que a Associação 30 de Julho pede para ser recebida, mas sem sucesso. São inúmeras as preocupações dos beneficiários, entre a ausência das novas tabelas de preços para o regime convencionado (prometidas há mais de três meses), o desconhecimento sobre o processo de negociação com os grupos privados de saúde em torno das regularizações (a ADSE exige 38 milhões de euros aos prestadores por alegada faturação em excesso em 2015 e 2016), bem como a reformulação do regime contratual das convenções, entre outras matérias.

Carlos Mamede tem 67 anos, é reformado do Instituto da Mobilidade e dos Transportes e preside à Associação 30 de Julho, desde 2016, altura em que foi criada esta estrutura de representação dos beneficiários da ADSE.

Ao todo, a Associação 30 de Julho conta com “1436 apoiantes segundo a nossa contabilidade via plataformas nas redes sociais, dos quais mais de uma centena são pagantes”, ou seja, desembolsaram uma joia de 5 euros, a que se soma uma quota anual de 20 euros.

Há sete meses que a Associação 30 de Julho pede para reunir com a direção da ADSE. Já foram recebidos?

O Conselho Diretivo continua a não responder aos pedidos de reunião. É inaceitável e incompreensível, mas coerente com a falta de respeito que a presidente do Conselho Diretivo [Sofia Portela] tem demonstrado perante os representantes dos beneficiários, seja o vogal do Conselho Diretivo [Eugénio Rosa], sejam os que estão no Conselho Geral e de Supervisão (CGS) [liderado por João Proença], sejam os que estão fora deste, como é o caso da Associação 30 de Julho.

Sabe se já estão fechadas as negociações com os grupos privados de saúde relativas ao processo de regularizações (a ADSE exige 38 milhões de euros aos prestadores que terão sido faturados a mais em 2015 e 2016)?

Há três meses que começou o processo de negociação e até hoje não sabemos de nada, há uma opacidade enorme em relação a esta matéria. Espero que o conselho diretivo não se esteja a preparar para meter isto na gaveta e perdoar esta regularização aos grupos privados de saúde e espero que o CGS seja firme na fiscalização. O segredo sobre o assunto é total e temos indicação (segundo informação recolhida nos bastidores da ADSE) que o processo está parado. Mas não quero alimentar rumores.

O diferendo entre a ADSE e os prestadores por causa das regularizações acabou em ameaças dos grandes hospitais privados de rasgarem as convenções com a ADSE. Os grandes grupos privados são os vilões nesta história?

Não há razão para um tal adjetivo! Prestam muitos serviços de saúde de qualidade e a que os beneficiários da ADSE recorrem com frequência. Devem por isso ser vistos como parceiros e cooperadores do sistema, assegurando uma prestação de serviços de acordo com os compromissos que subscrevem, assumidos em convenções claras e equilibradas. E devem ter em conta que a nossa Constituição (artigo 64º) lhes reconhece esse direito, não como um direito comercial mas como um direito social, com a obrigação explícita de assegurar adequados padrões de eficiência e qualidade. No contexto deste sistema, os prestadores privados têm de cumprir o seu papel e a ADSE tem a obrigação de cumprir o seu.

Como é que se chega ao impasse em que estiveram os grandes grupos privados e a ADSE?

Inabilidade e inércia da gestão da ADSE.

Foi legítima a tomada de posição dos hospitais privados?

Não, mas foi o resultado da lentidão da ADSE a reagir.

Também estão atrasadas as novas tabelas de preços para o regime convencionado.

O problema das regularizações só se resolve com preços fechados. Há três meses, na Assembleia da República, houve o compromisso, pela presidente da ADSE, de apresentação imediata das novas tabelas. E até agora não sabemos de nada.

É a tal opacidade de que fala.

Sejam as regularizações, sejam as novas tabelas, sejam os critérios para as convenções (há muitos anos que os acordos são feitos de uma forma desequilibrada e é necessário o novo modelo contratual) e a quem são abertas, são informações que aqueles que pagam a ADSE têm o direito de saber e o conselho diretivo da ADSE não tem essa preocupação. Espero que os critérios para as convenções e as novas tabelas não sejam negociados com os grupos privados e publicados sem que haja conhecimento por parte dos beneficiários. Há a total opacidade em relação a tudo isto.

pedro nunes

O modelo de governação da ADSE devia mudar?

É um modelo desequilibrado, temos um fundo solidário (há quem lhe chame um seguro público, que não é), que é gerido no sentido de garantir o acesso à saúde privada por parte dos funcionários públicos e que tem características completamente diferentes dos seguros. É necessária uma gestão que conheça o negócio e é preciso que se vá buscar ao sector segurador muitas das boas práticas. O modelo de faturação, por exemplo, precisa de ser completamente modernizado porque está dependente de muitos recursos humanos quando devia depender de tecnologia. Por outro lado, os órgãos de gestão, e em particular o Conselho Diretivo, devem assegurar uma administração transparente, moderna, ágil e sem os atuais constrangimentos e limitações. É imperioso que o Conselho Diretivo utilize de forma eficiente os recursos que mais de 830 mil funcionários, no ativo e aposentados, põem à sua disposição para assegurar a sustentabilidade do sistema.

Há capacidade financeira para investir em tecnologia?

Absolutamente, assim como há capacidade financeira para recrutar os 58 trabalhadores que fazem falta.

Porque é que isso não avança?

Porque a tutela [Ministérios da Saúde e da Finanças] continua a exercer um poder absolutamente anacrónico sobre a gestão daquele fundo que é privado.

Que modelo defende?

Um que tenha uma maior participação dos beneficiários, em que a autonomia na gestão administrativa, financeira e patrimonial da ADSE devia ser completa. O Estado poderia ter uma capacidade muito forte de intervenção, de fiscalização e, até, ficar como um dos administradores da casa. A ADSE tem que ter capacidade de se gerir por si própria, não pode estar dependente das mesmas regras que regem todos os outros institutos públicos quando é um organismo distinto. Aliás, é ridículo que as contas da ADSE estejam no Orçamento do Estado, aqueles cerca de 600 milhões de euros não são do Estado [valor anual dos descontos dos beneficiários que pagam a ADSE]. Além disso, o CGS não devia ser um órgão meramente consultivo, devia aprovar os instrumentos fundamentais de gestão da casa e os beneficiários deviam ter uma presença mais ampla no CGS.

Os beneficiários estão mal representados?

Estão insuficientemente representados. Não por culpa de quem está no CGS, mas em consequência do imperfeito processo eleitoral decretado pelo Governo em 2017 e que contrariou a lógica do diploma criador do instituto público [em que se tornou a ADSE], impondo a votação em listas de oito nomes, subscritas por pelo menos cem beneficiários. Este método veio favorecer a apresentação e defesa de candidaturas promovidas por organizações que já tinham, e bem, a sua representação assegurada no Conselho (sindicatos e associações de reformados).

Defendem que a ADSE é sustentável, porquê?

Todos os estudos já efetuados confirmam que a ADSE é sustentável se for aberta a todos os funcionários do Estado, independentemente do seu vínculo, e se puder contar com uma boa gestão dos seus recursos. Por isso, temos insistido tanto com a urgência de o Governo aprovar e publicar a lei para o alargamento da ADSE aos funcionários com contrato individual de trabalho.

O que pensa da proposta do CDS-PP de abertura da ADSE a todos os trabalhadores?

É uma ideia peregrina. Um alargamento da ADSE a todos os portugueses significaria acabar com a natureza solidária que hoje tem. Tal só seria possível se a ADSE fosse transformada num seguro e qualquer seguro impõe, por exemplo, limites de idade. E mesmo assim não é claro que ficasse sustentável. É importante que se perceba que a ADSE é um fundo solidário, financiado pelas contribuições dos seus beneficiários, não se trata de um seguro de saúde. Nem sequer de um seguro de saúde público, como alguns insistem em lhe chamar.

A opinião pública ainda está contaminada em relação ao que é a ADSE?

Há muita gente a falar sem saber o que diz. No caso, do CDS, por exemplo, ao fazer esta proposta está em linha com aquilo que sempre defendeu, não é a primeira que levanta a questão da ADSE ser para toda a gente. A minha convicção é que o faz por essa é uma forma de favorecer, não só os grandes hospitais privados (que devem estar apreensivos com os enormes investimentos que têm feito), como também o sector segurador, porque 1,2 milhões de beneficiários [este número inclui os familiares dos funcionários públicos] é muito apetecível. O alargamento implica que não seja possível manter as condições atuais da ADSE e, acredito, que em seis meses a ADSE acabasse entregue ao sector segurador.

Como estão os atrasos nos pagamentos aos beneficiários das comparticipações das despesas suportadas quando recorrem ao regime livre (as faturas são pagas por inteiro e depois reembolsadas em parte pela ADSE)?

Os contactos com a ADSE e com muitos beneficiários que se nos dirigem a expor os seus problemas e dificuldades revelam que continuam a verificar-se atrasos superiores a dois meses, com muitos casos a aproximarem-se dos seis meses. Tudo indica que esta situação vai piorar com as férias dos trabalhadores da ADSE, que são escassos.