ARQUIVO Cannes 2012

Michael Haneke abriu um túmulo em Cannes

23 maio 2012 11:39

Francisco Ferreira, enviado a Cannes (www.expresso.pt)

Jean-Louis Trintignant em "Amour"

O cineasta austríaco abriu um túmulo em Cannes chamado "Amour". O Festival de Cinema vai no seu oitavo dia. E termina domingo.

23 maio 2012 11:39

Francisco Ferreira, enviado a Cannes (www.expresso.pt)

Falámos com Jean-Louis Trintignant (momento palpitante e raro) e também com Michael Haneke. Sobre "Amour". Sobre o envelhecimento, a doença, a eutanásia. Comoventíssimo filme. Trintignant abandonou o cinema nos últimos e já bons anos. Dedicou-se em definitivo ao seu plateau - o teatro - mas abriu uma excepção para o novo trabalho do cineasta austríaco, que ele considera o maior metteur en scène cinéma do mundo.

Não o seguimos aqui, Sr. Trintignant. Haneke sempre nos colocou problemas. Quem pode negar como ele filmou, por vezes com duvidoso controlo, por vezes com desconfortável vigilância, o que resta da humanidade, a sua desilusão, a sua crueldade, a sua agonia? Mas também já o tínhamos escrito: com "O Laço Branco", Palma de Ouro de Cannes 2009, Haneke encontrou uma distância lúcida e implacável (no caso, por uma evocação histórica) para as suas obsessões. No caso de "Amour", essa distância é puramente afectiva. Ruiu um coração de pedra em Haneke?

O amor

Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva) são dois octagenários, ambos professores de música na reforma. Têm uma filha (Isabelle Huppert), também ligada à música e que raramente os visita. Têm um belo piano de cauda no salão de um apartamento enorme e despojado, do qual alguém forçou a entrada - certamente um espectador que não pediu licença para entrar. Um dia, Anne sofre um princípio de enfarte: fica paralisada do lado direito. No hospital, horrores que não vemos. Volta para casa: o marido cuidará dela a partir daí. Deixará de andar, de falar. Cai na cama, depois é o fim. No primeiro plano do filme, os bombeiros, com um lenço no nariz para abafar o mau cheiro, arrombam a porta de um apartamento que só com o flash-back que se segue - visita à vida que houve antes da morte - fará sentido.

Os atores são franceses, o apartamento também, e até a porteira do prédio, de que se adivinha a origem (papel pequeno, mas marcante, de Rita Blanco), é a porteira parisiense típica. E contudo tudo nos parece germânico neste filme. Haneke está obviamente a falar da burguesia intelectual da sua origem e que ele conhece. A questão económica, numa cena terrível em que Georges expulsará uma impiedosa enfermeira sem coração, é assunto a ter em conta: ninguém poderá dizer que é por falta de dinheiro que acontece o que se vê.

A compaixão

O que acontece? O que se vê? Uma senhora idosa que morre de doença e um senhor idoso que, com ela, morre de amour. Não é propriamente a coisa mais agradável de ver, o obsceno pode bater à porta a qualquer instante. Não entra: Haneke atinge aquilo a que por hábito se chama de simplicidade dos justos. Deve-o a Trintignant, deve-o a Riva, acima de qualquer coisa: os prémios de interpretação do palmarés bem podem ficar por aqui.

Daquele apartamento, que é um túmulo, daquela peça de câmara, que é uma bagatela de Schubert, não sairemos. Só que este apartamento, pela primeira vez - atrevemo-nos a dizê-lo - em Haneke, já não é um espaço de terror, tal como em "Código Desconhecido", em "A Pianista", em "Caché"... O que se descobre a partir dos planos cerrados, de uma divisão a outra, é antes um espaço de partilha, de superação, de um reencontro.

Haneke estreou todos os seus filmes no Festival de Cannes (excepto "Funny Games", se a memória não falha) e nenhum impressionou tanto como "Amour". Deste não deixamos o desfecho, só um momento. A certa altura, há um teimoso pombo que insiste em entrar no apartamento. Anne está já acamada, muito doente. Georges tenta apanhar o pombo e consegue-o finalmente, com uma manta, à terceira tentativa (podemos pensar no que o pombo representa: a morte a chegar? Lembram-se do fim de "A Comédia de Deus" de César Monteiro?). Contudo, e ao contrário do que se poderia prever em Haneke, nem o animal é sacrificado nem Georges o devolve à liberdade: acaricia-o. Haverá calvário que não exija compaixão?

Amour de Michael Haneke Competição