Mundial de Râguebi

Entre dois mundos

8 setembro 2007 10:39

Rui Cardoso, enviado a França

EMpenho do capitão Vasco Uva (número 8)valeu-lhe o título de Melhor em Campo

8 setembro 2007 10:39

Rui Cardoso, enviado a França

Antes de a selecção portuguesa de râguebi ter vindo estagiar para aqui, poucos estrangeiros teriam ouvido falar de Chambon-sur-Lignon. O nome diz tudo sobre a localização: à beira do rio Lignon, um pouco à maneira das nossas Ponte de Lima ou Miranda do Douro. Mas o que é verdade para os outros não o é, necessariamente, para os franceses: durante o Verão, a população passa dos habituais 2500 habitantes para o quádruplo. Não há termas, nem outro atractivo óbvio: apenas uma natureza bem conservada, sossego e belas paisagens, na transição das planícies do Ródano para a montanha e o planalto. Chambon fica já a mil metros de altitude.

Os três quartos de hora de viagem de carro desde Saint Étienne (ou, um pouco mais, a partir da vizinha cidade de Lyon) suscitam alguma reflexão para quem acabou de chegar de Portugal. Surpreendentemente, o preço dos combustíveis é ainda mais alto, ou seja, o melhor que se consegue procurando muito e abastecendo nas bombas dos hipermercados é o preço da rede da GALP entre nós. Mas é no desenho e na gestão da estrada que estão as maiores diferenças. Basta conduzir uns dias em França para verificar que os condutores locais não são, nem mais educados, nem mais respeitadores do Código da Estrada que os portugueses. No entanto, morre-se muito menos ao volante. A explicação está à vista de toda a gente: estradas de bom piso, e onde as situações perigosas estão assinaladas com clareza e entecedência. Muitas das estradas nacionais foram duplicadas, à maneira das "autovias" espanholas e não têm portagem. E a mais humilde das estradas secundárias está mais bem pintada e sinalizada que algumas auto-estradas lusas.

De Tence para Chambon, uma linha férrea acompanha a estrada. O estado da via não é o melhor, mas percebe-se, até pela existência de passagens de nível bem arranjadas, que ali circulam comboios. No posto de turismo obtém-se uma explicação curiosa: trata-se de uma linha rural, de bitola metrica, inaugurada em 1901, e que ligava as margens do Ródano às do Loire. Em 1968, de acordo com aquilo que agora é a última moda da gestão ferroviária em Portugal, a linha foi considerada deficitária, sem interesse comercial e encerrada, Contudo, em 1993, um grupo de entusiastas da ferrovia, conseguiu, com o apoio dos poderes locais, reabrir parte da linha para fins turísticos. Isso implicou a recuperação de algum material circulante histórico, nomeadamente automotoras fabricadas pela companhia De Dion Bouton (mais conhecida pelos automóveis de luxo que produziu). E assim, de Verão, de uma a três vezes por semana, há comboio turístico, sempre muito concorrido. O que implicou que, também, as estações se mantivessem vivas, agora como pólos de dinamização cultural.

Foi, justamente, de comboio que aqui chegaram, a partir de 1941, as primeiras crianças refugiadas de guerra, parte das quais judias. Foram acolhidas em diversas pensões e escolas e, fosse pela protecção de quem as abrigou, fosse por falta de empenho das autoridades locais, a verdade é que nunca houve deportações para os campos de concentração. De resto, alguma bonomia rural fez com que prefeitos e "gendarmes" locais nunca fossem muito activos na perseguição aos que, aos poucos, iam pegando em armas contra a ocupação nazi. Esse papel ficou reservado paras as milícias do governo colaboracionista sediado em Vichy. Sucedeu, até, que em Agosto de 1944, perante um segundo desembarque aliado no sul de França (sucedendo ao da Normandia, de 6 de Junho) formações inteiras de polícias e respectivos comandantes se passaram para o lado da Resistência, o que contribuíu para a rendição a combatentes franceses livres de algumas centenas de soldados alemães aquartelados na região. Uma exposição na estação de caminho-de-ferro e um folheto distribuído no posto de turismo local, intitulado "Parcours de la Mémoire" (percurso da memória) evocam as pessoas e locais-chave desses tempos difíceis. O espírito de tolerância dos locais parece ser secular, pois aqui se refugiaram protestantes fugidos às sangrentas guerras religiosas de inícios do séc, XVII. Uma placa, aposta no edifício fronteiro à igreja protestante, reconstruída em 1820 e cujo pastor, em Junho de 1940, perante a rendição do Governo francês, apelou à resistência "com as armas do espírito", evoca o gesto dos habitantes locais em 1940/44. E assim qualificado na obra de Lucien Lazare: "É com orgulho que recordamos pessoas que, em tempo de barbárie e de medo, salvaram a honra da França".

Uma selecção que cultiva a fraternidade e o companheirismo. dentro e fora de campo e que trilhou por mérito próprio o seu caminho até ao Mundial, não podia estar instalada em melhor local.