13 agosto 2014 12:34
Numa breve paragem pela praia do Furadouro, em Ovar, dois acontecimentos chamaram-nos a atenção: as massagens gratuitas que se estavam a fazer no areal, miminho da Câmara; a arquitetura curiosa das casas viradas para o mar. Porque as massagens não se explicam - recebem-se -, decidimos conhecer as histórias que estão por detrás de três moradias que nos prenderam a atenção. Dois repórteres do Expresso partiram numa viagem que os levará de norte a sul de Portugal. Estão a narrar diariamente o mais inesperado que se encontra pelo país fora.
13 agosto 2014 12:34
"O amor é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar."Carlos Drummond de Andrade
Dia #11 na estrada. Ovar
Casa 1: Cuidado com o Dálmata (e as pessoas daqui são amáveis, em especial os homens)

Cuidado com o Dalmata
No terraço de uma vivenda verde água, um grande Dálmata de louça está a mirar o mar. Tocámos à porta. Do interior saiu um casal de espanhóis com dois gatos. Isaura, de 60 anos, e Pablo, de 64, com os gatos Henrique e Cleópatra. Vieram de Salamanca e escolhem sempre Ovar para passar as férias de Verão.
"Tem muita tranquilidade." Pablo é médico reformado, Isaura é médica de medicina geral, psicóloga e entrevistadora numa estação de rádio e TV de Salamanca. "As pessoas daqui são amáveis. Em especial os homens, que acho particularmente bonitos", diz-nos Isaura, que pagou "mil e picos" para estar um mês de férias com vista para o oceano. Faz questão de sublinhar que se vivesse nesta moradia mudaria muita, muita coisa. "Rasgava mais janelas na parede, queria o mar a entrar mais cá dentro. Ou a casa mais virada para fora".
E o Dálmata? - perguntamos. Ela sorri e abre os grandes olhos castanhos esverdeados. Pablo responde por ela: "Ese perro es muy dócil, no muerde". Mas Isaura não vai nisso: "Mas a mi me gusta mas los gatos".
2. Casa das Pedras (na cadeira, a observar o mar bravo)

A casa das pedras
É a casa mais aparatosa das redondezas. Toda construída em pedra, grandes janelas para o mar, traço de arquitecto, uma escadaria, paredes ornamentadas com conchinhas. Subimos ao andar de cima, batemos à porta, explicamos o que andamos a fazer na estrada. Alice Osório, 54 anos, estava na companhia do filho Afonso, de 16 anos, entre leituras e filmes. Programa de férias, sem tempo e horas. Esta farmacêutica hospitalar, residente no Porto, convida-nos a entrar e conta-nos que esta é a sua casa de sempre. De família. Construída nos anos 50 por um tio arquiteto, Aristeu Ravásio Gonçalves.
"E desde logo as pessoas se fascinaram pela diferença desta casa. Se perguntar aos mais velhos de Ovar, todos se recordam quando é que foi construída a 'Casa das Pedras', como todos lhe chamam. É feita de granito azul, uma pedra boa, resistente." Este é o refúgio de Alice, de Verão e de Inverno. A parte debaixo é alugada à quinzena por €600. A parte de cima é o seu espaço de contemplação.
"Gosto de olhar o mar bravo, com ondas. Se fosse pelo meu marido, já tínhamos vendido a casa. Ele costuma até dizer-me 'se tu sou soubesses que estas ondas te iam engolir a casa, não a vendias?' Respondo-lhe sempre que não. Nunca. Porque a adoro. É muito especial estar na minha cadeira a olhar o mar."
3. Casa manguitos e língua de fora (ó Nel, tu que és tão jeitoso de mãos, porque não me fazes uma vareira?)

Tira aqui uma foto junto aos bonecos
É um museu? Uma loja de souvenirs? Um pequeno parque de diversões? A dúvida instala-se nos primeiros instantes de quem passa frente à moradia da família Soares. Um olhar mais demorado faz perceber que se trata de uma casa privada de alguém com um particular sentido de humor que se quis diferenciar de toda a vizinhança. No terraço, uma família de estátuas cumprimenta com manguitos e línguas de fora quem passa na rua: pescadores, toureiros, varinas e até o Santo André, o santo pescador. Lá dentro, junto à entrada da casa, dezenas de painéis evocativos do Sporting. No portão da garagem, pintado em traço naif, um painel com as figuras típicas da região, onde não falta o cão "tatu", o rafeiro do artista da casa.
Lisa, uma menina de 8 anos luso-descendente, posa frente ao portão. "Je veux un photo." A avó Maria do Rosário faz-lhe a vontade. "É fixe. É típico. É original e diferente", comenta esta família que vive nos arredores de França. Batemos à porta para conhecer o artista desta obra. Ninguém atendeu.
Acabamos guiados por dois rapazinhos da localidade que nos levam para junto do areal onde está o casal Soares, os donos da casa da bonecada. O senhor Manuel Soares, 77 anos, e Lucina Leal, 75, estão à conversa com gente amiga da terra. Abordamo-los para saber a história daquelas vistosas criações. Lucina conta a história como deve ser. Ou seja, do princípio.
"Nós somos de Santa Maria da Feira. O meu homem foi trolha e eu gaspeadeira de sapatos (ponteava e pregava a parte superior e dianteira dos sapatos em fábricas de calçado). Andámos toda a vidinha 'descalços' e admirávamos a vida dura dos pescadores, tínhamos adoração pelos vareiros (habitantes de Ovar). E um dia disse ao meu marido 'ó Nel, tu que és tão jeitoso de mãos e fazes tantas coisinhas, porque não me fazes uma vareira aqui para casa?'." E Manuel construiu a primeira estatueta em cimento e argamassa de uma vareira da região a carregar peixe. Foi há 16 anos. A primeira de uma grande família.
"Faço estas brincadeiras para me entreter, para animar a malta que passa e atrair mais pessoas para a região, que tem tanta coisa bonita. E de vez em quando ponho-me ao largo a apreciar as reações. Há quem passe, goste e até tire fotos. Outros passam e acham uma macacada, fazem pouco daquilo. Não me ralo - enquanto puder mexer-me, vou fazer estes bonecos", diz-nos um sportinguista dos sete costados.
Lucina mostra uns arranhões no braço. "Ando sempre toda raspada de dar cotoveladas sem querer naquelas estátuas, quando ando pela casa. O meu marido não me deixa vender nada. Mas um dia consegui fazer bom dinheiro com um marco do correio com cara de carteiro que me quiseram comprar. O Nél fez logo outro igual."
VEJA AQUIO DOSSIER COM TODOS OS ARTIGOS - E ADICIONE-O AOS SEUS FAVORITOS