ARQUIVO Um país com quilómetros de histórias

Os próprios médicos prescrevem trabalhos manuais às pessoas viradas do capacete

14 agosto 2014 20:54

Bernardo Mendonça e Tiago Miranda

Conhecemos um designer do Porto que usa excedentes e desperdícios florestais para criar peças de artesanato de luxo e "crafts" utilitários para casa e que tem como colaboradores gentes das aldeias da Serra D'Arga que aprenderam a dar valor ao que deitavam fora. Dois repórteres do Expresso partiram numa viagem que os levará de norte a sul de Portugal. Estão a narrar diariamente o mais inesperado que se encontra pelo país fora.

14 agosto 2014 20:54

Bernardo Mendonça e Tiago Miranda

Dia #12 na estrada. Ponte de Lima; Candemil, Vila Nova de Cerveira

A manhã começou na vila de Ponte de Lima, com a sua bela arquitectura medieval e o não menos belo Rio Lima. Estávamos com tempo no início desse dia e quisemos saber mais sobre a história de um criativo do Porto que se inspirou directamente na natureza, e em desperdícios, para construir refinados objectos de design, com o apoio da população de aldeias. Um amigo falara-nos do projecto e ficámos curiosos.

Sérgio Lemos é o nome do designer que esteve quatro anos em retiro na Serra d'Arga, na zona de Viana do Castelo, e saiu de lá com um doutoramento escrito na área do "design social" e uma colecção de peças de autor feitas de ramos de Carvalhos da região. Simples, sofisticadas e sem impacto ambiental.

Por sorte ele estava disponível e o encontro foi marcado horas mais tarde numa serração, em Candemil, Vila Nova de Cerveira.

Sérgio chegou de mota, com uma mochila às costas a transbordar de objectos de madeira feitos por si. "É aqui neste lugar que me abasteço dos ramos que dão origem a estas peças, a estes 'crafts' [artesanato criativo]. Não me cobram nada por eles, porque não têm valor comercial, são desperdício", conta-nos.

Apresenta-nos o senhor Cândido, um dos donos da serração, que tem um contributo especial no vídeo que acompanha este texto. As razões que deram origem ao projecto D'Arga contam-se muito rapidamente. "Há anos em que tinha a sensação que o design é uma actividade que contribui para a delapidação dos nossos recursos naturais. E não tem de ser. Queria encontrar um objectivo mais nobre e correto. Interessa-me a sustentabilidade, a ética e a responsabilidade social."

Sérgio, de 44 anos, que tem uma pós-graduação em design industrial pela Glasgow School Of Art e pelo Centro Português do Design e mestrado em design, materiais e gestão pela Universidade de Aveiro, apercebeu-se que a região estava saturada da produção de eucaliptos e pinheiros, que dão lucro imediato à industria das madeiras, mas desgastam o solo. E, "como metáfora", criou objectos de design feitos de ramos da árvore mais comum na região - o Castanheiro (Castanea sativa).

Parte do processo é feito num atelier na aldeia de Covas, pelas mãos de alguns colaboradores. Da sua colecção fazem parte bancos, utensílios de cozinha, tábuas de corte, cabides, candeeiros. Todos únicos, a aproveitarem as formas naturais da madeira. Os preços balançam entre os €25 e os €150 euros. "As peças são em estilo rústico, rural e ficam bem numa casa moderna, sofisticada. Por contraste." O próximo passo é a internacionalização. Por agora, as suas peças podem ser encontradas nas lojas de design "Mundano" e "Sala da Frente", no Porto, e na página de Facebook "Darga crafts".

Em tempos em que a maioria dos portugueses anda a fazer contas à vida, há mercado para peças manufacturadas como as suas? "Acho que sim. Pratico preços acessíveis e produzo em pequena escala. Embora na zona onde moro, no Porto, haja cada vez mais lojas do chinês, com as peças mais baratas do mercado. Ora, na teoria da evolução das espécies (lojas), o mais apto é a loja do chinês, que oferece ao mais baixo preço o que o consumidor quer. Eu crio para um consumo mais lento, consciente e satisfatório. E que possa durar e herdar-se."

Um dos desejos de Sérgio é criar uma oficina itinerante para sensibilizar o gosto dos outros por objetos como os seus. "Gostava de contribuir para criar mais postos de trabalho e dar mais razões para as pessoas se fixarem nesta região. Na oficina itinerante que imagino, uma pessoa que quisesse passar um fim de semana na Serra D'Arga podia aprender a fazer uma colher a partir de um ramo como as da minha colecção, numa unidade de Turismo de Habitação. E isso poderia vir a viabilizar um novo turismo cultural nestas zonas rurais."

E, antes de partir na mota, diz-nos: "Dá-me prazer dar novas formas de beleza a peças brutas criadas pela natureza. É terapêutico. Os próprios médicos prescrevem trabalhos manuais às pessoas viradas do capacete. Faz bem a qualquer um."

Sérgio Lemos, designer de equipamento

Sérgio Lemos, designer de equipamento

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