José Mourinho sobre o Chelsea

"O nosso problema foi começarmos a ganhar cedo de mais"

17 dezembro 2006 9:01

17 dezembro 2006 9:01

Está em segundo lugar este ano, mas fala aos jornais como se fosse em primeiro. Não o assusta não ir à frente desta vez?
É uma experiência nova para mim. Nas outras duas épocas começámos à frente muito cedo. Já nas duas épocas anteriores, em Portugal, foi a mesma coisa. Eu sempre disse – e não mudo o discurso agora que sou o perseguidor – que é melhor ir à frente. Quem vai à frente só tem de pensar nele próprio. Quem vem atrás tem de ter alguma preocupação para que aquele que vá à frente tenha os seus percalços.

Como acha que vai reagir se perder o campeonato?
Anormalidade é eu ter ganho quatro campeonatos seguidos. Não é normal um clube fazê-lo, e muito menos um treinador. Se eu perder um campeonato, o quinto ou o sétimo, seja ele qual for, encaro-o com naturalidade. O que eu procuro fazer — para não me culpar a mim próprio quando isso acontecer — é tentar que os níveis de ambição não diminuam porque ganhei três ou quatro campeonatos. Gostava que acontecesse porque o adversário foi melhor, não porque não fui tão competente, tão determinado, tão líder como costumo ser. Mas estou tão convencido agora como estava há três ou quatro meses de que vamos ganhar o quinto campeonato.

O Chelsea tem mais adeptos hoje do que tinha há dois anos e meio, antes de ter chegado?
Tem.

Nota muita diferença?
Eu não noto muita diferença, porque desde que cheguei a lotação está esgotada uma semana antes do jogo. Não há um único bilhete para um único jogo.

A imprensa inglesa diz que o Chelsea joga menos bonito do que outras equipas.
O poder económico das equipas consideradas não candidatas ao título é tremendo. Não está a ver uma equipa como o Braga ou o Vitória de Setúbal pagar dez ou 15 milhões de euros para contratar um jogador. Aqui, uma equipa do fundo da tabela gasta tranquilamente seis, sete milhões de libras por um futebolista. Cada jogo pode-se perder ou ganhar. A exigência é tremenda. Depois, há muitas competições. Chegamos ao final de uma época com 60 a 65 jogos. Uma equipa como o Chelsea não pode fazer escolhas. Temos de tentar ganhar todos os jogos e todas as competições. É um desgaste tremendo. Eu costumo dizer – com todo o respeito, porque é o futebol de onde eu venho e para onde um dia irei voltar – que em Portugal brincamos um bocadinho ao profissionalismo. No ano passado, enquanto as equipas portuguesas estavam de férias de Natal, nós jogámos sete jogos.

Vê o futebol da mesma forma que via antes de vir para Londres?
Uma equipa campeã em Inglaterra não é campeã em Espanha, e o campeão em Espanha não o é em Inglaterra. São coisas completamente diferentes. Temos de ser flexíveis e nos adaptar às características do futebol onde estamos. E Inglaterra tem mudado. Houve grandes treinadores que chegaram, antes de mim, e eu também tenho alguma responsabilidade na mudança de qualidade do jogo. O futebol inglês deixou de ser tão directo e tradicional como era.

Mudou, portanto, depois da sua vinda.
Houve outros treinadores que já tinham tido uma influência positiva. Por exemplo, o Wenger. É óbvio que não somos os melhores amigos, mas respeito o trabalho que ele fez e tenho de reconhecer que é um grande treinador. Começou a fazer um bom trabalho mesmo antes de eu chegar.

Mandou um postal de Natal a Arsène Wenger. Porquê?
Não mandei só a ele.

Wenger diz que passou a olhá-lo com outros olhos a partir desse momento.
Confesso que mando para todos. Na primeira liga somos 20 treinadores e eu envio 19 postais de Natal.

Há dois anos disse em entrevista ao Expresso que se considerava a grande cabeça do futebol não só em Portugal como na Europa. Continua a achar-se o melhor dos treinadores?
São troféus. Ganhei os dois últimos anos mas estou convencido que este ano não voltarei a ganhar. Não é porque seja melhor ou pior do que era, mas o futebol é mesmo assim. Nos últimos anos não ganhei competições europeias. O troféu vai e vem. É como com os jogadores e a Bola de Ouro. Umas vezes vai para o Zidane, outras vezes vai para o Figo. Agora, é óbvio que estou num grupo de elite onde há seis, sete ou oito treinadores. Treinamos os melhores clubes, estamos nas melhores competições, conseguimos os melhores resultados, ano após ano.

Mas o que é o torna, a seu ver, o Special One?
Eu vim quase directamente do anonimato. Quando eu treinava o Leiria ou na minha primeira época no Porto, era praticamente um desconhecido. Passei do anonimato para esse grupo restrito de elite. O que é que nos leva para lá? Os títulos. O que é que nos mantém lá? Os títulos. Não há volta a dar: o futebol é ganhar. Special One? No futebol inglês isso faz sentido talvez pela ruptura com o tradicionalismo, por ser uma personalidade diferente, que arriscou muito na primeira época, na primeira abordagem. Nunca nenhum treinador tinha sido campeão ao chegar ao futebol inglês. Sempre foi considerado algo de muito especial, de difícil adaptação e domínio.

Não acha que tem arriscado demasiado às vezes? Houve aquela acusação ao treinador do Barcelona, Rijkaard, de que ele tinha ido ao balneário do árbitro...
Não arrisquei nada. Fiz aquilo que sempre faço, que é acreditar nos meus e naquilo que os meus me dizem de uma forma cega e objectiva. E se um adjunto me diz «foi assim, eu vi», não é nenhum Rijkaard deste mundo que me vai dizer o contrário. Simplesmente pus-me ao lado de um colaborador, como me porei sempre, sem olhar às consequências. Não é o exemplo perfeito.

Esse episódio abalou a sua imagem.
Um dos meus problemas é exactamente não me preocupar com a minha imagem. É uma das minhas características, que faz com que eu seja mais amado por uns e mais odiado por outros. É mais importante a minha equipa e os objectivos que perseguimos. São princípios dos quais não abdico.

Não se arrepende?
Não me arrependo. Exactamente porque o princípio é inerente à minha personalidade.

E nunca pediu desculpa?
Pedir desculpa por uma convicção ou uma característica de personalidade, não sou capaz de o fazer. Sempre considerei que houve uma desigualdade brutal (no caso Rijkaard) na forma como as coisas foram analisadas e conduzidas. Uns foram de imediato considerados os donos da verdade e os outros foram considerados os donos da mentira. E quando as coisas vão por esse caminho, não vale a pena haver mais discussão. É um episódio que faz parte do passado. Uma das vantagens de ter atingido um determinado estatuto é que podemos chegar a um momento e dizer: pensem o que pensarem de mim, a minha qualidade é evidente. Não há dúvidas sobre a minha competência. Estou-me nas tintas para o que pensam e para o que dizem.

Mas lembra-se de alguma vez ter pedido desculpa a um treinador adversário? Alguns sentem-se ofendidos consigo.
Também não me lembro de alguém me ter pedido desculpa. Às vezes nem há necessidade da palavra. Por exemplo, eu e o Benitez, do Liverpool, tivemos um ou dois jogos em que trocámos declarações um pouco mais agressivas e onde o jogo terminava e nem sequer nos cumprimentávamos. Esta época eu estava à espera dele no túnel e sem uma única palavra abraçámo-nos. Para mim, isso tem mais significado do que algum de nós ter dito que esteve mal ou esteve bem. Estivemos os dois mal. Já nos encontrámos depois disso meia dúzia de vezes. Mais vale um gesto do que uma palavra. Quando as pessoas gostam uma da outra, como é o caso, as coisas acabam sempre por se resolver.

Tornou-se amigo de Roman Abramovich ou mantêm uma relação meramente de patrão-funcionário?
A dimensão da palavra «amigo» é complexa. O que posso dizer é que gosto dele. Tenho uma relação que ultrapassa a ligação patrão/treinador. É uma relação aberta, frontal, muito objectiva e pragmática. Ele sabe o que é que eu quero, eu sei o que é que ele quer. Os meus problemas são os problemas dele, os meus objectivos são os objectivos dele.

Ele segue de perto a vida do clube?
Tem a sua vida, mas raramente perde um jogo. Quando as suas semanas permitem que esteja em Londres, também vai ao centro de estágio. Mas, ao contratar-me e ao contratar o Peter Kenyon e outros profissionais importantes, é exactamente com o objectivo de ter os melhores e delegar funções e responsabilidades e de não se preocupar muito.

Ele costuma fazer-lhe reparos?
Não. Encaramos as coisas com naturalidade. Pertencemos os dois ao mesmo projecto. Eu como profissional, ele como dono. Estamos ambos contentes quando as coisas estão bem, estamos ambos chateados quando as coisas estão mal. E sabemos que a cooperação é importante. Ele também sabe, pela minha personalidade, que se algum dia não estivesse contente no Chelsea ele iria ser o primeiro a saber que eu me quereria ir embora. Com esta abertura e frontalidade, a minha vida no Chelsea é tranquila.

O que é que o distingue do Pinto da Costa?
São completamente diferentes. A vida profissional do senhor Pinto da Costa, pelo menos no meu tempo, era o Futebol Clube do Porto. Vivia 24 horas para o clube. O Abramovich é uma pessoa com uma vida para além do futebol.

Prefere alguém como Abramovich, que mantém uma maior distância?
Nós temos é de nos adaptar em função daquilo que é a liderança do clube. Com o tipo de relacionamento que há com um presidente do dia-a-dia, não há necessidade de reuniões periódicas, organizadas, documentadas. Senti-me bem no Porto e sinto-me bem como funciono agora.

Costuma ler o que escrevem sobre si?
Não.

Ninguém lhe faz um resumo?
Há um assessor de imprensa no clube que está comigo todos os dias e que me faz um briefing. Não é um assessor pessoal que vem dizer: «Escreveram este artigo sobre ti». O que me preocupa são as notícias em redor da minha equipa, para eu poder liderar melhor.

Tem consciência de que muitas vezes saem artigos sobre si que nada têm a ver com futebol?
Tenho a noção disso.

O nome Mourinho traduz uma espécie de atitude e é usado para muitas coisas. Até para a gestão. Tem ideia de que a imprensa inglesa o trata de forma diferente do que a imprensa portuguesa quando estava em Portugal?
A imprensa portuguesa é muito mais futeboleira. Eu dava uma conferência de imprensa antes de um jogo qualquer e, no dia seguinte, O Jogo, o Record, A Bola faziam uma transcrição palavra por palavra. Eram capazes de fazer uma página sobre a minha conferência de imprensa. E, no dia a seguir ao jogo, havia a análise táctica ao jogo. Em Inglaterra a imprensa não é futeboleira, nem é desportiva. Não há um único jornal desportivo. Há duas ou três páginas de desporto em cada jornal, desde o Sun até ao Times. Eu nem consigo saber pela imprensa qual é o jogador que está lesionado na equipa com que eu vou jogar. O que é escrito tem de ser bombástico.

Não é propriamente «diplomático» em público. E em privado? Acha-se boa pessoa?
Acho que sou boa pessoa. Há claramente um Mourinho que é treinador e um Mourinho que não é treinador.

Os fins justificam sempre os meios?
Não. Em absoluto. A maior prova disso é que na minha vida há prioridades. E as minhas prioridades não são o futebol. Há uma coisa que me irrita terminantemente: a calúnia. Por exemplo, em Portugal eu ia a Fátima muitas vezes. E comentava-se: lá vai ele a Fátima porque é antes de um grande jogo.

Isso é uma calúnia?
Então não é? Eu vou a Fátima pedir para ganhar um jogo? Eu ia e vou a Fátima porque gosto.

Fátima não merece essa desconsideração, é isso?
Para mim a única coisa que me preocupa no mundo, de facto, são os meus. Quero lá saber do futebol para alguma coisa. Agora eu ia a Fátima pedir para ganhar um jogo?... A minha vida não é o futebol.

Mas é católico.
Sou católico e sou crente.

Nunca pediu a Deus para ganhar um jogo?
Já pedi. Mas a minha prioridade de vida não é o futebol.

Mas dentro do futebol e voltando aos fins que justificam os meios: prefere perder um jogo justamente e ser correcto ou ganhar mesmo que tenha de torcer um pouco as coisas?
Sou um adepto da correcção. O que eu não gosto é de perder pela incorrecção. E também não gosto de ganhar por incorrecção. Se me disser: vais ganhar no último minuto com um golo marcado com a mão, eu não quero. Mas também não quero perder assim. Os fins não justificam os meios. Agora, enquanto líder de um grupo, vou dar-lhe um exemplo concreto: quando faço as minhas escolhas, faço-o a pensar na melhor maneira de atingir um resultado. Magoa-me, no final de uma época, dizer a um jogador «não te quero cá, vais-te embora». Mas tenho de o fazer. Pagam-me para isso.

E transmite essa emoção aos jogadores?
Depende do jogador.

Adapta-se aos temperamentos?
Sim, adapto-me. Sou totalmente contra o velho chavão do futebol de que todos devem ser tratados da mesma maneira. Não devem. Cada um deve ser tratado de uma maneira muito específica.

E dá essas indicações aos seus adjuntos?
Dou. Às vezes conseguem ter eles uma afinidade maior com os jogadores do que eu próprio. Os jogadores podem defender-se mais comigo.

Não incentiva muito o convívio com eles.
Fora do espaço de trabalho, não. Eles precisam de espaço. Quando há o jantar de aniversário de um jogador e eu sou convidado, não quero ir. Não quero estar lá. Naquele momento devem beber o que quiserem sem eu saber o que bebem.

Os jogadores de futebol têm fama de se portarem muito mal.
Há uns que se portam bem e outros que se portam mal. Deve ser com os jogadores e com os jornalistas, os políticos, os médicos, com todos.

Neste momento é adversário directíssimo de Carlos Queiroz. Dão-se bem?
Damo-nos bem mas só falamos quando jogamos um contra o outro. Antes e depois do jogo, encontramo-nos.

Esteve para sair do Chelsea no final da época passada. Porquê?
Porque achava que o clube e o nosso trabalho são analisados de uma maneira injusta. De um lado há o potencial económico do Chelsea, mas do outro há o historial, o estatuto, o peso institucional de outros grandes clubes que jogam contra nós. Para o trabalho que se faz neste clube, meu e dos jogadores, há sempre um ponto de interrogação. Não nos dão o valor que sentimos que merecemos. Em determinados momentos, há um pouco de frustração e passa-nos pela cabeça dizer «já chega, quero outra coisa».

 

Sentiu que o seu trabalho não foi reconhecido?
Eu acho que nunca é reconhecido da mesma forma (que os outros). As coisas não mudam, agora cabe-nos a nós termos força suficiente.

Mas começou logo a ganhar em Inglaterra.
Se calhar o nosso problema foi começarmos a ganhar cedo de mais. A fasquia fica colocada bem alta e é por ela que nos temos de guiar. Fomos campeões no primeiro ano, fomos campeões no segundo e não há volta a dar: ou somos campeões outra vez ou o nosso trabalho será analisado de uma forma negativa.

Tem a sua equipa de sonho?
A equipa de sonho não existe. Há jogadores que jogam noutras equipas e que são intocáveis. Os grandes clubes não vendem os seus melhores jogadores. Mas tenho um plantel muito bom, com pequeninas lacunas, como todos têm. O grande segredo é fazer com que o todo seja melhor do que a soma das partes. Aí é quando a equipa está concluída.

Está contente com Hilário?
É uma situação muito específica: ser suplente do melhor guarda-redes do mundo. Se tudo corre bem e não há lesões, os guarda-redes suplentes são capazes de passar uma época inteira sem jogar. O que aconteceu com o nosso abriu as portas ao Hilário e eu não podia estar mais contente. Ele tem contrato por mais um ano e meio e penso que a tendência natural das coisas é renová-lo por mais tempo ainda.