ARQUIVO Presidência Obama

O bom (e mau) velho novo mundo das tradições americanas

30 janeiro 2009 0:39

L.M.Faria

Obama foi eleito com a utilização de novas tecnologias, mas o que faz a força do seu país é (também) o modo como conserva certas tradições arcaicas. Geralmente, essas tradições têm a ver com liberdade. Num ou noutro caso, os efeitos são perversos.

30 janeiro 2009 0:39

L.M.Faria

Algures na Pensilvânia, uma comunidade de umas 165 mil pessoas vive sem electricidade em casa. Quase não usa automóveis nem telefone. Recusa qualquer tipo de assistência do governo, incluindo segurança social. Fala uma antiga forma suíça do alemão, e pratica a cada hora a religião dos seus antepassados - uma variedade de cristianismo pacifista - sem mais desvios do que os necessários. A roupa, os costumes e os meios de subsistência são antigos, e o hábito de casar dentro da comunidade produz uma incidência elevada de certos tipos de doença. Há anos, um filme com Harrison Ford (A Testemunha) deitou luz sobre esse modo de vida. Eles não mudaram, mas lamentam as dificuldades que a subsequente afluência maciça de turistas lhes criou.



Os Amish são o perfeito exemplo de como os Estados Unidos, com todo o seu dinamismo e vontade de inovação, nunca deixaram de ter espaço para manter tradições ancestrais. Podíamos igualmente referir certas zonas judaicas de Brooklyn onde se usa electricidade mas se fala uma língua tida por morta - o yidish - e onde se usa um vestuário inspirado no dos nobres polacos do século XVIII, com longas casacas e vestidos florais. Ao contrário dos Amish, que vivem no campo, os habitantes dessas zonas estão no meio daquela que talvez seja a cidade mais criativa do mundo, com uma concentração única de indústrias em áreas que vão da finança aos media e aos diamantes. Em todas essas áreas se destacam correligionários desses ortodoxos, e provavelmente muitos deles. Mas isso não os impede de conservar o que julgam essencial da sua identidade, a um nível que noutros países seria considerado extravagante, ou mesmo perigoso.



Não é possível compreender a sociedade americana sem atender aos seus lados menos expostos, em particular àqueles que têm a ver com o que ficou de outras épocas. A última campanha eleitoral ilustrou bem vários contrastes e problemas que o país herdou há muito. Desde logo, obviamente, o racismo. Os jornalistas não tinham dificuldade em encontrar na América profunda quem achasse Obama "da cor errada". Mas seria um erro ver na sua vitória o triunfo de uma qualquer América contra outra. Ao contrário do que sucedeu, por exemplo, nos anos 60, hoje em dia não existe nenhuma oposição aberta entre conformismo e contracultura. De resto, isso não faz parte da essência profunda do país. É-lhe mais natural respeitar o passado do que rejeitá-lo, enquanto prossegue os seus fins a cada momento. Silicon Valley não é incompatível com velhos rituais na vida pública ou nas relações pessoais. O MIT fica ao lado de Boston, uma das cidades onde mais se sente o passado nos EUA. E tanto num lado do rio como no outro se ouve a toda a hora a palavra Sir, há muito esquecida em Inglaterra.

Vida, Liberdade e... Propriedade

Quanto à política americana, se por arcaísmo entendermos uma prática que geralmente caiu em desuso, ela está cheia deles. O maior é a própria constituição. Com apenas sete artigos, é a mais curta e a mais antiga do seu género do mundo. Já não se usam constituições assim, se é que alguma vez se usaram. (Para comparar, refira-se que a portuguesa tem centenas de artigos). Adoptada em 1787, quatro anos depois viu serem-lhe acrescentadas as primeiras dez emendas, designadas colectivamente como Bill of Rights. Outras dezasseis foram surgindo ao longo do tempo. Princípios tão fundamentais como o direito à liberdade de expressão e de religião (primeira emenda) ou a protecção contra a auto-incriminação (quinta emenda) e a igualdade de protecção (14ª emenda) ficaram estabelecidos à partida, e é em torno deles que ainda hoje se decidem os casos judiciais mais importantes.



A veneração pelos americanos do seu sistema legal e político pode ter a ver com o sucesso do país. Mas não há dúvida que esse sistema, pese a ocasional trepidação, tem sabido evitar crises maiores. Enquanto o país for bem sucedido a proporcionar a um número suficiente de pessoas "vida, liberdade e a procura da felicidade" (o esboço original desse texto dizia "vida, liberdade e propriedade"), não haverá alterações de fundo. E manter-se-á o prestígio de instituições como o Congresso, ainda que se possa não ter estima individual pelos congressistas. No senado, inspirado pelo exemplo romano - o termo vem da palavra senex, que significa velho -- encontram-se rituais e até personalidades que vêm claramente de outro tempo. Uma das personalidades é o senador Robert Byrd, antigo membro do Ku Klux Klan que se tornou um democrata progressista e lembrava uma figura bíblica quando fez um solitário discurso contra a guerra do Iraque em 2003. No que respeita a procedimentos, não é só o uso de expressões como 'aye' (um voto a favor) e distinguished gentlewoman (um oponente do sexo feminino) que dá um tom arcaico ao senado. Também há a sobrevivência de práticas como o filibuster, graças ao qual se bloqueia a passagem de legislação que tem o apoio da maioria por meio de um estratagema que consiste em prolongar o debate falando indefinidamente.

Estados em forma de cobra

A outro nível, há tradições políticas que roçam a perversidade. Particularmente notória é uma chamada gerrymandering. Baptizada sobre o nome de Elbridge Gerry, governador do Massachussetts entre 1810 e 1812, consiste na prática de redesenhar circunscrições eleitorais de forma arbitrária, com o objectivo de favorecer um partido e desfavorecer os outros. Se dentro de um estado cada circunscrição elege um número fixo de eleitores, tenta-se concentrar os votantes do adversário num único distrito que ele já tivesse garantido, ou diluí-los por vários distritos de forma a ele ficar sempre em minoria; e faz-se o inverso em relação aos votantes do próprio partido. O efeito gráfico destas manobras é muitas vezes caricato, com os distritos a assumirem formas bizarras. O Massachussetts redesenhado por Gerry fazia lembrar uma salamandra, donde a segunda parte do termo.



Com tudo o que tem de escandaloso, o gerrymandering permanece vivo e eficaz. Há anos, a legislatura republicana do Texas queria aprovar uns desenhos particularmente torcidos e os democratas não tinham outra forma de o evitar senão impedindo o quorum. Infelizmente, a legislatura tinha poderes para os obrigar a comparecer, pelo que só lhes restou fugir -- literalmente deixando o Estado e instalando-se em motéis do outro lado da fronteira, para impedir o quórum. Conseguiram manter-se nessa situação durante quase dois meses, mas por fim capitularam. De notar que os republicanos não se encontram sozinhos no recurso a esta prática. Os democratas também a usam, embora menos. Barack Obama, por exemplo, não esperou muito quando foi eleito para o senado do Illinois em 1995 até ordenar a reconfiguração do mapa eleitoral em alguns distritos. O pretexto era a melhor representação das minorias, mas por acaso o desenho final era completamente favorável aos democratas.



O gerrymandering torna-se possível por causa de outra velha tradição política americana: o controle de comissões eleitorais e organismos afins pelos partidos, especificamente pelo partido que em cada momento se encontrar no poder. Imagine-se a nossa Comissão Nacional de Eleições a ser agora dirigida pelo PS, ou há quatro anos pelo PSD, e tem-se a situação equivalente. Há oito anos, na Flórida, viu-se o que isso pode dar. Como o partido republicano controlava a máquina estatal, tomou todas as decisões vitais sobre a contagem dos votos na eleição presidencial. Favoreceu o seu candidato, George W. Bush, ao ponto de bloquear a recontagem de votos mesmo onde tinha havido problemas graves. E quanto o candidato democrata Al Gore anunciou que ia recorrer aos tribunais, foi avisado que se fosse preciso a questão subiria até ao Supremo Tribunal - onde os republicanos sabiam que podiam contar com uma maioria favorável.

Juízes escolhidos a dedo

O voto final do Supremo, com os cinco juízes conservadores a favorecerem Bush e os outros quatro a favorecerem Gore, ilustrou do modo mais deplorável os riscos que se correm quando os juízes são escolhidos por critérios políticos -- outra tradição que remonta aos tempos originais da democracia. Ainda hoje os magistrados (como os sheriffs) são eleitos em várias zonas da América. Quanto aos juízes do Supremo, são nomeados pelo presidente. Embora tenham de ser aprovados pelo Congresso, é tradição respeitar a escolha, a não ser que haja razões muito fortes, como incompetência notória ou uma história de alcoolismo, por exemplo. Fora desses casos o congresso aprova, e é por isso que o Supremo Tribunal se torna um argumento importante nas campanhas presidenciais. Actualmente existe uma maioria conservadora no Supremo, mas é uma maioria oscilante. Se John McCain tivesse vencido as eleições, ela consolidar-se-ia por muitos anos. Afinal, os lugares no Supremo são vitalícios.



A clivagem político-judicial costuma notar-se em inúmeras áreas, desde o aborto ao processo criminal e aos direitos dos trabalhadores. Um tema em que a aparente futilidade das motivações se traduz numa verdadeira guerra cultural entre diferentes zonas do país é o direito individual a possuir armas, em especial armas de fogo. Esse direito constitui sem dúvida uma originalidade americana. Raros países o admitem com a mesma extensão. Apoiado por uma parte substancial dos americanos e por uma poderosa indústria de fabricantes, ele tem aguentado inúmeros ataques ao longo dos tempos e parece destinado a continuar, apesar dos frequentes massacres em escolas e noutros lugares. O facto de já existirem mais armas do que pessoas nos EUA, de muitas dessas armas serem automáticas, e de servirem para cometer violências em número largamente superior ao de qualquer nação desenvolvida, não leva a alterar a situação legal. No passado mês de Junho, uma decisão do Supremo Tribunal confirmou-a além de qualquer dúvida. Fê-lo em termos que justificam perguntar se os juízes que votaram nesse sentido, embora habitualmente se declarem "originalistas" -- isto é, resistentes a encontrar na constituição direitos novos que não estavam na cabeça dos fundadores -- não terão ido eles próprios além do texto original na sua interpretação.



A Segunda Emenda à constituição, que é a base desse direito, declara: "Sendo uma milícia bem organizada necessária à segurança de um estado livre, o direito do povo a manter e levar armas não será infringido". (A well-regulated militia being necessary for the security of a free state, the right of the People to keep and bear arms shall not be infringed). Para um leitor leigo, e para muitos que não o são, a primeira parte da frase parece indicar o sentido da norma. Tratava-se de garantir que as milícias estaduais, durante séculos vistas como a garantia última contra o poder dos déspotas, estariam sempre em condições de funcionar. Em Inglaterra, o direito individual a ter armas surgiu muito cedo. Seria formalmente consagrado na Bill of Rights de 1689, uma das principais inspirações dos homens que redigiriam a constituição americana.

O país original

Em princípio, a evolução dos tempos teria tornado a segunda emenda irrelevante, e até indesejável. A partir do momento em que existem forças de polícia organizadas e um exército nacional, que necessidade há de milícias? A novidade da sentença de Junho é declarar expressamente que a segunda emenda protege o direito a ter armas não apenas para defesa de um estado, mas para auto-defesa individual. O processo judicial em causa referia-se a uma lei que bania a posse de armas de fogo em casa. O tribunal decidiu que o distrito de Columbia, ao promulgar essa lei, violara a constituição, pois esta concede a cada cidadão não apenas o direito a ter uma arma em sua casa, "como a tê-la operacional para o objectivo de autodefesa imediata".



Nem todos os juizes concordaram, e um dos dissidentes foi ao ponto de considerar grotesca a interpretação adoptada. Mas para já a questão ficou decidida. Sobrevivem algumas limitações que se foram impondo à compra de armas, ou de certas armas, por exemplo obrigando a verificar se o comprador tem cadastro. Mas o grande passatempo nacional das armas de fogo continua. O elemento cultural e lúdico desse passatempo, que raramente surge referido nas decisões judiciais, mostrou uma vez mais a sua força. Tão forte é esse elemento que nenhum dos candidatos presidenciais o contestaram, e a candidata vice-presidencial republicana Sarah Palin subscreveu-o ao apresentar-se como entusiasta da caça. O seu hábito de disparar sobre alces a partir de um helicóptero dá a essa prática ancestral um curioso toque moderno.



Palin pode não ter vencido as eleições, mas ganhou a estima de muitos milhares de fellow hunters. Mesmo sem caçarem lá do alto, eles vêm a América como ela a via. Original.