ARQUIVO Tarrafal

A surpreendente vida de 'Dadinho' Fontes

29 abril 2009 20:52

José Pedro Castanheira

Eduardo Fontes propôs a libertação de Luandino Vieira e a PIDE vigiava-o, mas o campo só fechou no 1.º de Maio.

29 abril 2009 20:52

José Pedro Castanheira

Em 1966, Silvino Silvério Marques viu terminada a sua comissão de quatro anos como governador-geral de Angola. O mesmo sucedeu a todos os seus colaboradores. Entre eles, Eduardo Vieira Fontes, que trabalhava no palácio, em Luanda, como secretário do 'número dois' do governo, o secretário-geral Morais Martins, seu amigo e compadre. Sondado para dirigir o Campo de Trabalho de Chão Bom, no Tarrafal, Fontes procurou inteirar-se da situação, falou com o director cessante e com o governador. "Depois de ver que a PIDE não tinha a tutela do campo e que o director despachava directamente com o governador, uma vez por semana, aceitei" - explicou ao Expresso, na sua casa de East Providence, nos EUA. Era a oportunidade de voltar a Cabo Verde, de onde saíra há quase vinte anos.

Eduardo Vieira Fontes, mais conhecido por 'Dadinho', nasceu em 30 de Agosto de 1922, na vila de Assomada, em Santiago, filho de embarcadiço. No liceu de São Vicente foi contemporâneo e amigo de Amílcar Cabral. Professor primário, concorreu ao quadro administrativo da Função Pública, o que lhe permitiu ir para Angola em 1948. É principalmente da sua rica experiência de funcionário colonial que trata o livro de memórias, "Guia de Marcha". Esteve no distrito diamantífero da Lunda e em Malanje. Logo após os massacres da UPA e da resposta por parte das autoridades coloniais, foi transferido para a Baía dos Tigres, no extremo-sul, num processo nebuloso que o leva a falar de "uma perseguição" movida pela PIDE e responsáveis do governo. Antes, frequentara em Lisboa o curso de Altos Estudos Ultramarinos, tendo sido aluno de Adriano Moreira. Quando este chegou a ministro do Ultramar, tirou-o do deserto da Baía dos Tigres, nomeando-o, sucessivamente, para Lobito, Benguela e, finalmente, Luanda.

O novo director do Tarrafal tomou posse a 7 de Agosto de 1967. Naquela época, o campo destinava-se a militantes dos movimentos de libertação que lutavam em Angola e na Guiné. Criado por Salazar em 1936, com as características de um campo de concentração, foi inaugurado por anarquistas e comunistas (como o jovem Edmundo Pedro), envolvidos na greve geral de 1934 e na revolta dos marinheiros de 1936. Conhecido como "campo da morte lenta", ali morreram, por falta de cuidados médicos ou da extrema violência prisional, 32 presos, com relevo para Bento Gonçalves e Mário Castelhano, secretários-gerais, respectivamente, do PCP e da central sindical CGT. As pressões internacionais a seguir à II Guerra Mundial ditaram o encerramento, em 1954.

Com o início da guerra colonial, em 1961, foi reaberto como campo de trabalho, em condições diferentes da primeira fase. Pedro Martins é o autor do único livro sobre a segunda fase do Tarrafal, "Testemunho de um Combatente". Natural de Cabo Verde e militante do PAIGC, ali esteve detido de 1971 até ao seu encerramento. "Sob a nova administração" - acusa -, o campo "encontrava-se apetrechado para fazer sofrer no máximo a juventude nacionalista africana". Incluindo uma minúscula cela de betão armado, baptizada de "holandinha" e que substituiu a temível "frigideira". 'Dadinho' Fontes, porém, garante: "Nunca mandei nenhum preso político para a 'holandinha'. E ponho a mão no fogo em como não houve no campo torturas como em Caxias ou Peniche". E aos que o acusam de desumanidade e brutalidades, responde: "Não fui nenhum carrasco! Era um funcionário do Estado e os regulamentos tinham que ser cumpridos".

Em Maio de 1968, o campo contava com 19 presos políticos de Angola e 52 da Guiné, além de meia centena de detidos de delito comum oriundos de Cabo Verde. Um dos primeiros problemas que enfrentou foi uma espécie de insubordinação colectiva de guineenses, que se recusaram a limpar uma vala junto ao refeitório. O líder do movimento chamava-se Aristides Barbosa. Preso na Guiné em 1962, fora enviado para o Tarrafal sem qualquer processo - simplesmente sob suspeita, como a maioria dos seus conterrâneos. Fontes considerou estar-se perante uma "desobediência declarada e atitudes de indisciplina" e castigou severamente Barbosa com "30 dias de cela disciplinar, a pão e água de três em três dias". Barbosa foi libertado em 1969, no âmbito de uma gigantesca operação política promovida pelo general Spínola, governador da Guiné. No seu derradeiro parecer, o director advertiu: "Considero-o um dos piores elementos de entre os internados (...) Será elemento perigoso se for posto em liberdade". O futuro dar-lhe-ia razão. Aristides Barbosa saiu do Tarrafal, juntamente com todos os demais prisioneiros guineenses, entre os quais Momu Turé. Ambos viriam a estar no centro da trama que levou ao assassinato de Amílcar Cabral em Conacri, a 20 de Janeiro de 1973, acabando por serem fuzilados pelo PAIGC .

O Tarrafal nunca mais teve presos guineenses, mas a sua população carcerária foi reforçada por várias levas de Angola e também de Cabo Verde.

Um processo aberto pela delegação da Praia da PIDE/DGS revela que, pelo menos desde 1970, 'Dadinho' Fontes não tinha a confiança da polícia política. Uma das queixas da DGS foram os "laços de boa amizade" com a "família Ferreira Querido", ligada a sectores oposicionistas. "Não será de admirar" - lê-se num ofício do chefe de posto do Tarrafal - que o director "tente proteger o recluso 'Zek' [diminutivo de José Querido], dando-o como recuperado". E em 1972, a DGS da Assomada detectou a sua presença num casamento, ao lado de "quase todos os ele mentos suspeitos do conselho".

Outro ponto de fricção foi a autorização dada a "estranhos" para visitarem os presos. A polícia insurgiu-se especialmente após a visita do escritor cabo-verdiano Manuel Lopes, que se avistou com o homólogo angolano Luandino Vieira e com o conterrâneo Carlos Lineu. "Autorizei muitas outras visitas", confirma Fontes, que menciona, entre outros, o antropólogo Jorge Dias e o historiador António Carreira. A polícia protestou: o director "dá as maiores facilidades a estranhos que visitem o referido campo. No entanto, essas facilidades não são extensivas ao pessoal da DGS". Em resultado, o governador Lopes dos Santos obrigou-o a dar conhecimento à DGS "de todo e qualquer elemento suspeito que porventura visite os presos por actividade subversiva".

Em Agosto de 1970, um comando do PAIGC assaltou o cargueiro "Pérola do Oceano", que fazia a ligação entre a Praia e a ilha do Fogo. O objectivo era fugir para o Senegal e, mais tarde, desencadear um foco guerrilheiro nas ilhas. A operação malogrou-se e levou à detenção de uma dúzia de importantes quadros cabo-verdianos. Segundo a DGS, Fontes "não tomou quaisquer medidas tendentes à captura" de alguns fugitivos. Num outro documento, a polícia estranhava, porque, para o responsável da cadeia, "todos são bons rapazes"...

Mas foi em torno de alguns reclusos angolanos que Fontes e a DGS mais se desentenderam. "Propus ao juiz que fosse dada a liberdade condicional a vários presos", conta Fontes, que menciona os escritores Luandino Vieira e António Jacinto, mas também o futuro diplomata cabo-verdiano Luís Fonseca, entre outros. O processo da PIDE confirma que já em Junho de 1970 Fontes havia apresentado uma "proposta para a liberdade" de Luandino. A DGS opôs-se firmemente: "O preso em questão não se encontra de maneira alguma recuperado, pelo que as razões apresentadas (...) são falsas e baseiam-se apenas na amizade que o director dispensa ao recluso", escreveu o agente do Tarrafal, o que mereceu a concordância do chefe da delegação da Praia, em correspondência para o director-geral, Silva Pais.

A Luandino viria a ser concedida a liberdade condicional em 1972, em Lisboa, muito antes de cumprida a pena de 14 anos a que fora condenado. A viver no Convento de San Paio, em Vila Nova de Cerveira, escusou-se a falar sobre os oito anos que passou no Tarrafal. 'Dadinho' publica no livro vasta correspondência de Luandino e da mulher, que atestam o esforço no sentido da sua libertação. Testemunhos idênticos são dados por documentos de outros presos também libertados, como Agostinho Mendes de Carvalho (um histórico do MPLA e futuro deputado), Nobre Pereira Dias (pastor metodista, também do MPLA), Bernardo Loureiro (FNLA), ou António Silves Ferreira (guineense do PAIGC). Igualmente reveladores, quanto à forma como geria a prisão, são documentos com a assinatura de Eduardo Chingunji (um dos mais influentes quadros da UNITA) e de Maria Luzia Pinto de Andrade, mãe de Justino e Vicente Pinto de Andrade.

Ao mesmo tempo, de Luanda o bispo auxiliar André Muaca prometia, num cartão, fazer "o possível por ajudar a resolver o caso do sr. Francisco Caetano", um ex-recluso do MPLA por quem Fontes intercedera. Primeiro bispo negro de Angola, Muaca fora assistente espiritual de Fontes em Luanda, no âmbito dos "cursilhos de cristandade". Também a frequência destes cursos foi assinalada pela DGS. Um ofício acusa-o de ausência "das suas ocupações profissionais", motivada pela ida aos cursos, e que "são bastantes as vezes" que tal acontece. Eduardo Fontes afirma, a propósito, que "os presos estavam nas minhas orações diárias". Conta que, nas suas viagens de carrinha entre o Tarrafal e a Praia, "rezávamos o terço em conjunto. Todos sabem que eu pedia sempre pela saúde e libertação dos presos".

Nesta segunda fase do Tarrafal estiveram lá 236 presos políticos: 106 de Angola, igual número da Guiné e 24 de Cabo Verde. A 1 de Maio de 1974 - seis dias depois do 25 de Abril -, saíram os últimos 51 presos (14 de Cabo Verde). Sentindo-se perseguido, Fontes veio para Lisboa em Junho de 1974. Por aqui ficou ainda um ano, até que, tal como muitos dos seus patrícios, se fixou nos EUA, com a mulher e os seis filhos.

Texto publicado no Expresso da edição do Expresso de 25 de Abril de 2009