5 outubro 2012 0:01
Do Porto à Califórnia. José Salcedo trouxe o primeiro Mac para Portugal, em 1984. Seguiram-se 20 anos de contactos com um "visionário destemido". Testemunho do português que privou com o Sr. Apple.
5 outubro 2012 0:01
Se tivesse aterrado um extraterrestre no aeroporto a reação não teria sido muito diferente.
dossiê Steve Jobs (1955-2011)O empresário português José António Salcedo não esquece a expressão de estranheza dos passageiros e dos funcionários da alfândega quando o viram chegar proveniente de um voo dos Estados Unidos com um Macintosh no meio da bagagem. Em janeiro de 1984, um Mac emPortugal mais parecia uma geringonça saída de um filme de ficção de científica de Steven Spielberg. "Tinha-o comprado na Califórnia. Era o primeiro computador da Apple a entrar no nosso país. Uma grande novidade", recorda o homem que já na altura era um fã incondicional do design e da tecnologia da Apple.
Salcedo lecionava na faculdade de ciências da Universidade do Porto e apercebeu-se rapidamente de que aquela máquina de design apurado e a cheirar a futuro seria uma ferramenta de trabalho imprescindível para os seus alunos. E se pedisse à Apple algumas máquinas iguais à sua? Foi o que fez, sem hesitar. A ousadia foi recompensada.
"Steve Jobs ofereceu-nos quinze Macintoshes. Foi uma grande alegria." Nos tempos que se seguiram, trocou algumas cartas com o fundador da Apple, e no verão de 1988 surgiu uma oportunidade única que não iria desperdiçar: o engenheiro português foi convidado para trabalhar por algumas semanas na Next, a segunda empresa de informática criada por Jobs (o americano saiu da Apple em 1985 em litígio e regressou em 1997 como um herói).
Durante a estada no coração do Silicon Valey, encontrou-se com omilionário californiano cerca de dez vezes. "No meu último dia a trabalhar na Next, um pouco antes de regressar a Portugal, Jobs convidou-me para jantar com ele.
Queria saber como estava a correr o projeto no Porto com os seus quinze computadores." A conversa ao jantar correu tão bem que o norte-americano decidiu oferecer dois computadores Next à universidade portuguesa. "Estes eram mais potentes do que os Macintoshes de 84.
Tratava-se de estações de trabalho muito sofisticadas para a época." Construtor de futuros Nos anos que se seguiram, o portuense, que hoje tem 60 anos de idade, voltou a privar com Steve Jobs por mais dez vezes, após algumas intervenções públicas do senhor Apple na universidade de Stanford e em Palo Alto, na Califórnia.
"Não me podia considerar amigo dele mas os nossos encontros acabaram por ser muito produtivos".
José Salcedo, que se doutorou em engenharia elétrica e física em Stanford em 1981, e passou metade da sua vida entre o sol da Califórnia e os chuviscos do Porto, não tem dúvidas: "Steve Jobs mudou a minha vida, pois transmitiu-me um conjunto de valores único." As conversas que mantiveram durante horas a fio permitem-lhe ter uma visão singular do homem que morreu esta quarta-feira de cancro no pâncreas aos 56 anos: "Tinha uma visão muito clara e corajosa do que é o futuro, não do ponto de vista do programador mas do utilizador de computadores." Mais do que isso, era "um construtor de futuros".
A sua paixão "obstinada, obsessiva e sistemática" levava-o a ter capacidade de vencer todas as dificuldades.
"Ao chegar ao futuro, a realidade demonstrava que ele tinha razão". Os produtos que Jobs concebeu, de uso simples mas com aparência sofisticada, provam a tese do português: o Apple II, o Macintosh, o estúdio de filmes de animação Pixar, o iPod, o iPhone e o iPad não são mais do que o futuro transformado em realidade. "A marca de Jobs vai perdurar para sempre", assegura o português, que não hesita em apelidar o seu trabalho de "visionário, belo e corajoso". Salcedo não considera exageradas as comparações feitas com o génio de Leonardo Da Vinci ou Thomas Edisson, ou com o empreendedorismo de Henry Ford. "É um inventor sem paralelo na história recente." E se alguém o lembra que o americano era tambémum homem de génio intempestivo, ele defende-o com honra: "Jobs ficava insatisfeito quando os colaboradores não davam o melhor de si".
Mantém-te esfomeado e curioso Na seu já longo percurso profissional, Salcedo seguiu à letra o lema de vida ensinado pelo homem da Apple, na célebre conferência de 2005, em Stanford, e que segundo a lenda foi ouvida e lida por mais de seis milhões de pessoas: Stay hungry, stay foolish, pediu Jobs aos fiéis de todo o mundo. A frase é mais profunda do que parece à primeira leitura. O português explica: "Jobs pedia-nos para estarmos eternamente insatisfeitos, fazer perguntas atrás de perguntas, não termos medo de arriscar e nunca esmorecermos a curiosidade intelectual. Pedia-nos também para nunca perdermos a inocência, a criatividade e o empreendedorismo".
Inspirado nos ensinamentos de Jobs, Salcedo criou uma empresa de alta tecnologia de lasers de alta precisão chamada Multiwave Photonics. "Os lasers fazem parte da minha vida desde os 19 anos, quando construí o meu primeiro laser", revela. A empresa emprega mais de vinte pessoas, tem sede na Maia e um escritório em São José, na Califórnia, quase vizinho ao quartel-general da Apple.
Há mais um caminho cruzado entre o português e o californiano: o filho de Salcedo trabalha há oito anos em São Francisco na Pixar, a empresa de animação criada por Jobs. "Ele está lá por mérito próprio", acrescenta.
A última semana tem sido de luto para milhões de pessoas e também para este empresário do norte. Jobs há muito que apresentava uma debilidade física gritante. Nas suas conferências, os jeans Levis ficavam-lhe já demasiado largos ao corpo. Depois do anúncio da sua doença, em 2004, ou do transplante ao fígado em 2009, a esperança de uma recuperação era pequena. Ainda assim, a sua morte foi recebida com surpresa: "É um momento triste para mim. Perdi uma pessoa muito importante na minha vida", refere José Salcedo.
Jobs acabou por morrer onze anos mais cedo do que o homem que inspirou a sua obra: Leonardo Da Vinci.
O cancro que minou Steve Jobs durante sete anos, acabando por matá-lo, é completamente diferente daquele que vitimou, em meses, o tenor Luciano Pavarotti, em 2007, ou a deputada Maria José Nogueira Pinto em julho, embora lhe deem o mesmo nome. O diagnosticado em 2004 ao criador da Apple não era um cancro do pâncreas, o mais comum e normalmente mais agressivo, mas sim um tumor neuroendócrino do pâncreas. Os neuroendócrinos não se desenvolvem nas mesmas células dos cancros mais graves, aparecem em qualquer órgão que tenha células com dupla origem: endócrinas (responsáveis pelas secreções internas) e neurais (com ligação ao sistema nervoso). São de evolução lenta e o doente pode até vir a morrer de outra causa. Ainda não é possível a deteção precoce destes tumores.
Texto publicado na edição do Expresso de 8 de outubro de 2011