ARQUIVO Mineiros soterrados

O resgate dos mineiros de San José

1 setembro 2010 19:09

Paulo Gaião (www.expresso.pt)

Os 33 sobreviventes vão viver o equivalente a uma viagem espacial: quatro meses em ambiente confinado. Veja o gráfico a explicar como serão resgatados.

1 setembro 2010 19:09

Paulo Gaião (www.expresso.pt)

Sobreviveram ao desabamento das galerias da mina de San José mas ficaram bloqueados a 700m de profundidade. Todos os julgavam perdidos até que um furo de emergência estabeleceu um ténue canal de comunicação. Vivem um drama semelhante ao dos marinheiros do submarino russo "Kursk" em 2000 mas, desta vez, a tecnologia que pode permitir salvá-los é promissora.

Os 33 mineiros estão soterrados desde 5 de agosto numa exploração mineira a 800 km de Santiago do Chile. Agora que se restabeleceram as comunicações recomendam-lhes: "Não liguem máquinas na mina!" (para não deteriorar o ar). E "não bebam a água que ficou nas rochas"!

Nos próximos dias deverá começar a funcionar uma perfuradora gigante (ver infografia) que vai repetir em larga escala as operações de perfuração dos últimos dias. Mas nem este colosso consegue perfurar mais de 15 m por dia: só alcançará os mineiros daqui por quatro meses. Mais imediata será a ajuda da sonda tripla com canais de ar, água e um cabo de videoconferência, a instalar este fim de semana, para garantir comunicação permanente com as equipas de salvamento, familiares e amigos.

Sondas salvadoras

O contacto com o exterior é fundamental, do ponto de vista psicológico, tal como programas de entretenimento. Esta semana os mineiros já foram abastecidos por sondas que lhes fizeram chegar água e cápsulas ricas em proteínas. As equipas de salvamento estão a estudar as fichas médicas porque há, pelo menos, dois casos de hipertensão e diabetes. É preciso alimentação equilibrada, ginástica e ioga.

Foi só na 2ª-feira, através de um furo de 12 cm de diâmetro por onde foi inserida uma sonda, que se ficou a saber que alguém tinha sobrevivido. Durante 17 dias os sobreviventes alimentaram-se da comida armazenada numa das zonas de refúgio existentes na mina: atum, leite, bolachas, pêssegos, tudo muito racionado.

Através de uma microcâmara descida pelo furo foi possível captar imagens de um dos mineiros. Estes responderam fazendo subir um bilhete que dizia: "Estamos todos bem, os 33, no refúgio". Não estão confinados a este espaço, já que podem caminhar umas dezenas de metros subindo até uma das oficinas.

Lá em cima, à entrada da mina, no acampamento chamado "Esperança", a multidão teve uma enorme explosão de alegria perante o anúncio de sobreviventes. Estes disseram que gostariam de estar livres para as festas do Bicentenário do Chile, a 18 de setembro. Ora, mesmo que tudo corra bem, a abertura de um furo de resgate demorará meses.

Deve, ou não, dizer-se a verdade aos mineiros? Quinta-feira, a equipa de acompanhamento optou pelo sim. Foi-lhes dito que só deveriam ser resgatados perto do Natal. Um ex-astronauta da NASA, Jerry Linenger, que em 1997 sobreviveu a um incêndio na estação espacial MIR, declarou que "saber que o iriam buscar, mesmo dali a três meses foi suficiente" do ponto de vista psicológico para se manter firme.

Nos dias em que estiveram isolados do mundo exterior, os mineiros mostraram grande capacidade de organização. Fizeram turnos de vigilância por causa da possibilidade de novos desmoronamentos, estabeleceram divisões de espaço, para comer, fazer as necessidades fisiológicas ou andar a pé. Também aproveitaram as baterias dos carrinhos da mina para montar sistemas de iluminação.

Luís Urzúa, o chefe de turno, teve um papel essencial. Segundo a imprensa chilena, Mario Gómez foi o mineiro que prestou apoio espiritual e religioso aos companheiros (já pediu pela sonda uma imagem religiosa e uma Bíblia) e Jonny Barrios, que costumava dar injeções aos vizinhos na sua aldeia, foi quem assegurou os primeiros socorros aos seus camaradas.

O presidente do Colégio de Medicina Interna da Ordem dos Médicos, José Augusto Barata, diz que os alimentos de elevada concentração calórica dados aos mineiros têm dois efeitos. Por um lado, reduzem o volume de dejetos, problema complexo no espaço confinado da mina.

No entanto, também oferecem perigo. "Poderá haver um grau de atrofia do epitélio intestinal, que obrigará a uma reintrodução gradual da alimentação normal", diz o médico. José Augusto Barata refere que o fornecimento de alimentos aos mineiros dever "ser feito a horas certas, contribuindo para a criação de um 'relógio biológico', próximo da normalidade". O clínico alerta ainda para o risco de desidratação dos mineiros. "Acima dos 25ºC as perdas de água através da pele, para manter a regulação térmica , tornam-se muito significativas", o que faz do abastecimento de água à mina uma questão essencial.

Em relação aos órgãos que podem ser mais afetados, o especialista refere que, mesmo no trabalho diário, o ambiente húmido e empoeirado em que os mineiros trabalham, já os deixaria "particularmente sujeitos a problemas do foro respiratório" e a "riscos de infeção por lesões da pele e tecidos moles", Numa situação como esta, em que vão manter-se soterrados por meses, estes riscos aumentam. "O stresse inerente ao enclausuramento pode originar ou agravar problemas cardiocirculatórios".

José Augusto Barata também identifica um problema que é frequente no ambiente mineiro: o excesso de consumo de álcool. Estas semanas de "privação de álcool podem acarretar problemas graves, físicos e psicológicos".

P.G. e V.L.A.

Paulo Sargento, psicólogo clínico e professor na Universidade Lusófona, defende a criação de dois espaços distintos no lugar onde estão refugiados os mineiros: um com luminosidade, simulando o dia, e outro escuro, recriando a noite. Esta "divisão é fundamental para minorar a alteração nos ritmos circadianos e ultradianos", causa de perturbações psicológicas. Neste contexto, Paulo Sargento defende o "recurso ao sistema da 'cama quente', como nos submarinos, com estabelecimento de turnos de quarto e de sono". Sobre a exiguidade do espaço, o psicólogo diz ser necessário prever "conflitualidades emergentes da sua gestão", em particular no que concerne às necessidades mais básicas.

"As dificuldades em relação à higiene pessoal, a contenção dos recursos alimentares e o racionamento de oxigénio, para além da distância física dos ambientes sociofamiliares, completam um quadro limite para qualquer ser humano". Perante a questão de os mineiros já terem sido informados de que podem só ser resgatados daqui a quatro meses, Paulo Sargento concorda com esta estratégia: "É preferível falar a verdade, para que eles possam gerir melhor as expectativas e criarem mecanismos de autocontrolo". O psicólogo define, ainda, como prioridades a "abertura de um canal de contacto permanente com as chefias da missão de salvamento; o contacto com familiares e amigos de forma estruturada e rotinada; e um canal de contacto para ajuda psicológica e médica".

O objetivo tem de ser "manter um clima positivo e de confiança", salientando que "seria bom as famílias estarem apoiadas psicologicamente para poderem comunicar de forma adequada". Em relação ao hábito do consumo de álcool pelos mineiros e à sua privação, Paulo Sargento desvaloriza o problema, referindo que "eles já estiveram 20 dias isolados e apesar disso organizaram-se muito bem".

P.G.

 

Texto publicado na edição do Expresso de 28 de Agosto de 2010