ARQUIVO Marcelo Caetano: a transição falhada

"Nem ditador, nem democrata"

21 fevereiro 2009 13:40

José Pedro Castanheira

Ana Maria Caetano, a filha que foi a primeira-dama de Marcello Caetano, leu um longo e bem preparado texto sobre o pai. Excertos.

21 fevereiro 2009 13:40

José Pedro Castanheira

1. Queria ele, teria ele esperado suceder a Salazar? Ele que consciente e clarividentemente me disse: "A pessoa que suceder a Salazar é para abater." O que se passou?

Numa perspectiva freudiana, repenso o ambíguo estatuto de "delfim" que Salazar, sem nunca o confirmar, terá lançado ao convidá-lo para ministro da Presidência. Tê-lo-á Salazar considerado como o filho que não teve, mas que ao suceder-lhe seria capaz de o "continuar"? Filho que ele admirava pela sua inteligência mas temia na sua oposição e constante rebeldia.

Para Marcello Caetano, terá Salazar sido o "pai" que se admira e a quem continuamente se jura fidelidade e lealdade, mas com quem se compete, criticando, opondo-se constantemente numa tentativa de separação/diferença no encontro com a sua identidade única e original? (...)

2. Marcello Caetano pretendia ser o homem da transição da ditadura para a democracia, ou pretendia manter a ditadura?

Naquele constante confronto com Salazar, ele terá desejado a diferença, mas não a rotura, o corte, tendo escrito: "Não houve, nem podia haver rotura com o passado próximo". Um amigo meu, por graça, referia-se àqueles tempos definindo-os por "Salazar-barra-Caetano". Tinha razão. A barra é uma separação, mas não um corte. A continuidade seria o "compromisso" por ele assumido durante toda a carreira (...).

... e com o pai, em Londres, 1973

... e com o pai, em Londres, 1973

Atrever-me-ia a dizer: Marcello Caetano não era nem ditador nem democrata. Ele seria: paternalista, autoritário, legalista, o professor que orienta, que ensina, que impõe regras e limites. Desde novo reclama "um mestre", "um chefe", "um guia". Gostava de mandar, de governar. (...) Seria autoritário mas era contra o autoritarismo. Não queria nem uma ditadura de modelo soviético, nem a de modelo fascista italiano. A ditadura vivida em Portugal tinha regras bem definidas (...).

Marcello Caetano desejava ainda liberalizar a Imprensa, embora a sua educação puritana e tão cheia de valores talvez não fosse propícia à sua total abertura. (...) Liberalização, sim, mas com algumas regras.

3. Queria liberalizar, sem dúvida, mas fazer a transição para a democracia? Talvez abrir o caminho para essa transição... Ao assumir o compromisso com o PR da não entrega do Ultramar sem a exaustiva tentativa, através de vias diplomáticas, de uma autonomia progressiva, a existência de um parlamento e a liberdade de imprensa parecem-me desde logo totalmente balizadas.

Tendo a guerra de continuar como retaguarda à possível resolução política e diplomática do Ultramar - sua grande e principal preocupação e fulcro de toda a questão -, discuti-la, pondo em causa os soldados que para ela partiam, mais parecia uma traição que ele não aceitava. Fabre-Luce escreveu sobre as ideias de Maurois: "As circunstâncias difíceis, impõem poderes fortes...". (...) A democracia, claro, seria decerto a solução do futuro, para outros que mais jovens se atrevessem à ousadia.

Texto publicado na edição do Expresso de 21 de Fevereiro de 2009