21 fevereiro 2009 13:00
Os últimos seis anos do Estado Novo - o Marcelismo -, foram discutidos durante um ciclo de oito colóquios.
21 fevereiro 2009 13:00
O ciclo 'Tempos de Transição', sobre a governação de Marcello Caetano (1968/74), foi seguramente o maior que alguma vez se fez sobre o último período da ditadura. "Ouviram-se depoimentos de grande importância de alguns dos principais protagonistas desse período", afirmou ao Expresso, em jeito de balanço, Manuel Braga da Cruz. O reitor da Universidade Católica Portuguesa, que foi, com o também historiador Rui Ramos, um dos directores científicos do ciclo, rejeitou liminarmente a acusação de se estar a promover uma "tentativa de branqueamento" desta fase da ditadura: "É de grande utilidade à historiografia ouvir estes homens e recolher as suas experiências".
Foi um ciclo em que quase tudo se discutiu. A começar pelo próprio título, posto em causa pelo presidente da Gulbenkian, Rui Vilar, que presidiu a um dos colóquios: "Foi um tempo rico em experiências, mas tenho dúvidas que tenha sido um tempo de transição".
O primeiro colóquio foi sobre a política económica e financeira. "Quinquénio dourado", chamou-lhe Xavier Pintado, secretário de Estado do Comércio (à época de Caetano), que justificou com índices reveladores da saúde financeira e do crescimento económico. João Oliveira Martins, secretário de Estado das Obras Públicas, apresentou uma listagem de projectos com a sua chancela, alguns dos quais ainda por concretizar, como o segundo aeroporto de Lisboa. Debate dominado pela ala "tecnocrata" e "desenvolvimentista", ainda assim revelou divergências de fundo. Uma, que viria a pairar sobre todo o ciclo, prendeu-se com a guerra e a política africana. Outra, foi sobre as diferenças entre os modelos defendidos por Caetano e Salazar. Mota Campos, governante de ambos, estabeleceu uma linha de continuidade, leitura frontalmente rejeitada por Oliveira Martins, que não se coibiu de criticar severamente Salazar.
A intervenção da ala liberal foi o tema do segundo colóquio, aproveitado por João Salgueiro, secretário de Estado do Planeamento, para se demarcar da leitura optimista do anterior painel. "Não houve um ajustamento da vida política às mudanças operadas no país" - acusou. O mesmo disse, por outras palavras, Francisco Pinto Balsemão: "Estávamos convencidos de que era possível fazer uma reforma e conduzir o país à democracia", frisou o deputado e director do Expresso. Ponto de vista idêntico foi o de Mota Amaral: "O que nos movia era uma transição do regime para a democracia". Só que, em 1973, o próprio pluralismo interno já estava condenado, como explicou Elmano Alves, o homem forte da ANP, partido único que fez questão de designar sempre como "associação cívica". Decepcionados, Salgueiro, Balsemão, Sá Carneiro e outros bateram com a porta. Para essa desilusão muito contribuíram a revisão constitucional de 1971 e a reeleição de Thomaz para Presidente, em 1973.
O terceiro colóquio foi dedicado às políticas educativa e de âmbito social. Tal como se previa, o principal protagonista foi Veiga Simão, o único ministro do Estado Novo que voltou a sê-lo depois do 25 de Abril. A partir das suas inúmeras conversas e de mais de três dezenas de cartas que conserva, o titular da Educação disse que Caetano acabou manietado pelas "forças reaccionárias dominantes, que o aprisionavam e submergiam com opiniões catastrofistas". Para mostrar a abertura da sua gestão à frente do Ministério das Corporações, Silva Pinto apresentou uma vasto rol de colaboradores, desde Nascimento Rodrigues, Mário Pinto e Sedas Nunes, até Teresa Santa Clara Gomes e Lurdes Pintasilgo. Da futura primeira-ministra, assegurou que foi ele "quem a lançou no mundo da política".
O fim do império foi o tema do decepcionante quarto colóquio. Como o próprio Braga da Cruz admite, foi o menos interessante, em que acabou por se falar muito mais de Baltasar Rebelo de Sousa (o último ministro do Ultramar), que do próprio Caetano. O principal orador foi o general Abel Couto, inexplicavelmente o único militar entre os mais de trinta intervenientes nos colóquios. O ciclo previa um painel juntando os que, afinal, derrubaram Caetano e abriram Portugal à liberdade. Infelizmente, os organizadores não conseguiram os militares que mais desejavam.

Embaixador Villas Boas e Rui Patrício
nuno botelho
Seguiu-se a política externa. Rui Patrício, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Caetano, classificou o 25 de Abril e a descolonização que se seguiu como "uma autoderrota de uma Nação". Numa intervenção de uma hora, insistiu em que "tínhamos a razão, o consenso, o direito e a equidade". E que, aquando da revolução, apesar da Guerra Colonial e do flagrante isolamento internacional, "o problema essencial não era de política externa, mas de ordem interna". A viver no Brasil desde 1974, Rui Patrício caracterizou a política de que foi o rosto como de "uma coerência absoluta e total". Sentado ao seu lado, o embaixador José Manuel Villas-Boas discordou abertamente. Em 1974, frisou, "as decisões de política externa eram tomadas, às vezes, de forma ad-hoc e quase precipitada". Melhor exemplo terão sido as negociações secretas, em Londres, com o PAIGC, tendentes a um cessar-fogo e à independência da Guiné. Em diplomacia, contrapôs Patrício, "há que ter sempre um plano B".
Os dois colóquios seguintes foram de âmbito bem diferente. Um, versou a revisão constitucional de 1971. Os intervenientes não foram decisores políticos, mas sim técnicos de Direito a quem Caetano pediu colaboração. A mesa juntou André Gonçalves Pereira, Miguel Galvão Teles e Jorge Miranda. "Foi muito interessante verificar a enorme confiança pessoal de Caetano na sua entourage académica, que ultrapassava as simples conveniências políticas" - nota Braga da Cruz. O outro colóquio agregou críticos, oposições e dissidências. Esperar-se-iam nomes como Mário Soares, Adriano Moreira, Freitas do Amaral ou até Jaime Nogueira Pinto. Ficou-se por figuras que, à época, eram secundárias. A dissidente comunista Zita Seabra foi quem falou do PCP. António Reis representou os socialistas. E José Miguel Júdice apareceu pela direita que abjurava Caetano.
A terminar, um oitavo colóquio dedicado à intimidade do Presidente do Conselho. Afilhado da mulher de Caetano, Marcelo Rebelo de Sousa considerou que este "chegou tarde demais ao lugar". "O momento natural" teria sido em 1958, "antes da guerra em África, da evolução do projecto europeu e da mudança das ideias políticas". "Um homem excepcional", foi como o comentador e ex-líder do PSD classificou Caetano. E explicou porquê. Rebelo de Sousa retomou as duas questões que mais marcaram os debates: a guerra e o modelo político interno. Quanto a África, acentuou a sua "ideia regionalista e tendencialmente federalista ou mesmo confederalista". Já no plano interno, duvidou que Caetano se revisse numa democracia semelhante à actual. Acalentava, sim, "uma liberalização, primeiro com pluralismo interno e, depois, no plano externo", para o que precisaria de "um horizonte de dez anos". Mas nesse pluralismo, como reconheceu Ana Maria Caetano, não caberia o PCP.
Como não incluiria uma liberdade de imprensa absoluta. A filha de Caetano, que, pela doença e morte da mãe, se viu transformada em primeira-dama, fechou este ciclo. A sua intervenção, mais do que um testemunho filial, foi quase um ensaio, necessariamente subjectivo, sobre a personalidade do pai.
Iniciativa de Pedro Rebelo de Sousa, o ciclo deverá dar origem a um livro, com as intervenções feitas e algumas conclusões por parte dos dois historiadores. Para já, Braga da Cruz retém que "sem resolver o problema da guerra, não era possível um processo de transição gradual e pactuada. A posteriori, percebe-se que a transição pacífica era impossível!".
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Texto publicado na edição do Expresso de 21 de Fevereiro de 2009