ARQUIVO Katrina 2005/2010

"O que o Katrina fez foi destapar a pobreza"

26 agosto 2010 20:32

Ricardo Lourenço, correspondente nos EUA (www.expresso.pt)

Russel Honoré reformou-se em 2008, após 37 anos de serviço

erik s. lesser/ap

Em entrevista exclusiva ao Expresso, o general Russel Honoré, que comandou a resposta do Pentágono ao desastre do Katrina, reconhece o atraso das operações de socorro e que hoje Nova Orleães continua vulnerável. Denuncia também as histórias inventadas pelos jornalistas durante a tragédia. Clique para aceder ao índice do dossiê Katrina 2005/2010

26 agosto 2010 20:32

Ricardo Lourenço, correspondente nos EUA (www.expresso.pt)

O General Russel Honoré comandou a força militar destacada pelo Pentágono logo após a passagem do furacão Katrina, em Agosto de 2005.

Clique para aceder ao índice do DOSSIÊ KATRINA 2005/2010

Reformou-se em 2008, após 37 anos de serviço, permanecendo ainda hoje como membro da "Louisiana Disaster Recovery Foundation".

É professor nas universidades de Emory e Vanderbilt e autor do livro "Survival: How a Culture of Preparedness Can Save America and You from Disasters" ("Sobrevivência: Como uma Cultura de preparação pode salvar a América e você de Desastres", em tradução livre).

Em entrevista exclusiva ao Expresso aceitou recordar a tragédia, partilhar memórias e perspectivar o futuro da cidade de Nova Orleães, uma cidade que continuará sempre "vulnerável".

Chegou à região afectada quantos dias depois da passagem do Katrina? Quais foram as primeiras impressões? Vim um dia depois da tempestade. Cheguei numa terça-feira ao Mississípi, onde parecia que tinha rebentado uma bomba nuclear. No dia seguinte, quarta-feira, cheguei a Nova Orleães. Milhares de pessoas amontoavam-se, procurando desesperadamente ajuda. Só queriam sair dali. No Mississípi a parede de água teve mais de nove metros de altura e arrasou toda a zona costeira. Apesar disso a maré baixou rapidamente e a água desapareceu numa questão de horas. Em Nova Orleães, uma cidade construída abaixo do nível do mar, a água oriunda dos canais e do lago Pontchartrain criou uma inundação histórica. Lembro-me imenso das pessoas desesperadas a perguntarem quando teriam transporte. Note que cerca de 80% da cidade foi evacuada. Os que ficaram eram maioritariamente velhos, doentes e pobres.

Concorda que a resposta foi demasiado tardia? Sim. Mas recorde-se que o cenário mudou de repente com o colapso das barreiras. Caso contrário tudo não tinha passado de mais uma tempestade e passado quatro ou cinco dias a vida regressaria ao normal. Outro problema é que o Katrina, embora fosse um furacão de grau 3, tinha um diâmetro de quase 400 quilómetros o que provocou uma precipitação continua e durante um largo período de tempo.

Em 37 anos de carreira militar alguma vez tinha visto um cenário parecido? Nunca.

As imagens pós-Katrina revelaram um lado da América muito frágil. Ficou surpreendido? As imagens de pobreza descoberta e de uma nação frágil não me chocaram. As infra-estruturas de Nova Orleães estavam débeis há muito tempo. O que o Katrina fez foi destapar a pobreza.

Quanto tempo durou a sua missão? Seis semanas que me ficaram gravadas na memória. Ainda hoje lembro-me dos velhos a tentarem escapar a qualquer custo e dos seus gritos de dor.

Como avalia a reconstrução da cidade? Nova Orleães sempre foi uma cidade de gente muito rica e de gente muito pobre, há pouca classe média. Esse aspecto acentuou-se. Hoje há muito emprego, mas a maioria é no sector do turismo e os postos de trabalho criados são mal remunerados. Antigamente, havia alternativas como a indústria naval, onde um operário ganhava mais do que um professor. Existia mão-de-obra qualificada.

Quer dizer que, depois do Katrina, Nova Orleães não se soube reorganizar? Está pessimista? Não, não. Por exemplo, o sector financeiro recuperou bem. Várias instituições lucraram muito com os empréstimos cedidos pelo Governo a baixas taxas de juro. Hoje, há mais restaurantes e hotéis do que havia antes da passagem do Katrina. Os apoios Governamentais foram óptimos. Mas os pequenos negócios não recuperaram tão bem.

Nova Orleães continua vulnerável? A cidade está mais segura. Os diques estão a ser propriamente reforçados pelo corpo de engenheiros do Exército, que ainda hoje continua a trabalhar. O problema é que qualquer cidade costeira do Golfo do México estará sempre vulnerável perante fenómenos deste tipo. Estamos a falar de uma massa de água com quase 10 metros a irromper subitamente pela costa.

A violência marcou os primeiros dias pós-Katrina, com os assaltos, pilhagens, assassínios e até alegadas violações em público. Hoje, as ruas de Nova Orleães estão mais seguras? Nova Orleães também já tinha um problema de segurança muito antes do Katrina. Mas uma coisa é certa: muito do que foi noticiado, nomeadamente os crimes ocorridos no "Superdome", foi exagerado pelos media. No terreno, tentámos sempre investigar as histórias relatadas pelos jornalistas e no fim, na maior parte das vezes, nada se confirmava. Houve roubos? Sim é verdade, mas isso passa-se sempre em situações deste tipo. Mas não se confunda roubos com luta pela sobrevivência. Estava sempre alerta e ordenava aos meus homens para que não disparassem contra aquela gente. Vimos o mesmo cenário há pouco tempo no Haiti. Uma coisa é um tipo entrar numa loja e roubar uma televisão, outra (e na maioria dos casos foi o que se passou) é as pessoas roubarem para comer. Elas estavam em modo de sobrevivência.

Recentemente, a propósito da maré negra no Golfo do México, apelou muito cedo ao envio do exército para a zona afectada. Porquê?