ARQUIVO Katrina 2005/2010

Foi notícia em 2005: Como foi possível?

25 agosto 2010 17:00

Tony Jenkins, correspondente em Nova Iorque

Reconstrução. Os primeiros rombos nos diques já foram tapados, mas a reconstrução levará meses

david j. phillip/reuters

Os erros e a descoordenação política agravaram o desastre de Nova Orleães, onde o problema dos diques remonta aos tempos da fundação da cidade. Clique para aceder ao índice do dossiê Katrina 2005/2010

25 agosto 2010 17:00

Tony Jenkins, correspondente em Nova Iorque

O Presidente Bush não acredita no aquecimento global nem é um grande entusiasta da defesa do ambiente - questões que tiveram, provavelmente, muito a ver com o furacão "Katrina".

Clique para aceder ao índice do DOSSIÊ KATRINA 2005/2010

Uma das razões por que foi tão fácil prever a catástrofe de Nova Orleães deveu-se ao facto de a cidade estar a afundar-se, devido a uma combinação de factores artificiais e ambientais, quase desde o dia em que foi criada, em 1718.

O rio Mississipi transporta grandes quantidades de solo e lama. Antes de a cidade existir, o rio inundava regularmente o seu delta e depositava toneladas de sedimentos nos pântanos - os "bayous" - e nas pequenas ilhas que formam uma barreira no Golfo do México. Essas ilhas exteriores e os pântanos absorviam muita da violência das tempestades, ajudando a proteger as comunidades em terra. Os pioneiros do século XVIII, ao cavarem o solo de Nova Orleães, encontravam frequentemente troncos inteiros de árvores quase à superfície, uma prova das inundações regulares. Mas nem se davam ao trabalho de informar o Governo colonial, que estava em Paris.

Tapar os buracos. Um helicóptero larga sacos de areia para reparar um dique

Tapar os buracos. Um helicóptero larga sacos de areia para reparar um dique

david j. phillip/reuters

Em vez disso, começaram a construir um sistema de diques para proteger as margens do rio e evitar as inundações. Os diques também contribuíam para que o rio mantivesse um canal calmo e rápido que facilitava a navegação das barcaças, que representava então, como ainda hoje, uma parte vital da economia do país. Mas estes diques impediam o rio de depositar a sua lama da mesma forma que antigamente. Esta interferência também permitiu que a água salgada penetrasse cada vez mais profundamente nas terras pantanosas, matando ervas e plantas que cresciam na água doce. Essas ervas ajudavam a consolidar o solo e, ao morrerem, a terra foi arrastada pela corrente, criando um ciclo vicioso de erosão acelerada. Em consequência, de acordo com uma estimativa, as terras pantanosas em redor de Nova Orleães perdem diariamente terra suficiente para cobrir mais de 30 campos de futebol.

Este afundamento de Nova Orleães em relação ao nível do mar agravou-se com a instalação da indústria petrolífera no Golfo do México, na década de 70. O petróleo é bombeado abaixo da superfície, o que também provoca o afundamento do leito do mar e reduz as terras pantanosas costeiras.

Finalmente, os engenheiros construíram canais para drenar terras pantanosas nos limites da cidade para que aí se pudesse construir e, ao fazerem-no, a terra secou, contraiu-se e abateu. A maioria dos especialistas considera que Nova Orleães está hoje um metro mais baixa do que há 300 anos, deixando-a vulnerável à maré-alta e às grandes vagas associadas aos furacões.

Mas o problema não se explica apenas pelo afundamento gradual. O "Katrina" foi uma tempestade particularmente violenta e um número crescente de cientistas considera que isto aconteceu devido às temperaturas do oceano, que estão a subir devido ao "efeito de estufa" e cujo calor alimenta os furacões que varrem o mar em direcção ao litoral.

Bombagem. A água que submergiu a cidade já está a ser bombeada de volta para os canais

Bombagem. A água que submergiu a cidade já está a ser bombeada de volta para os canais

the dallas norning news/ap

A água dos mares evapora-se. Ao subir, este ar quente provoca uma espécie de vácuo, sugando ar e provocando ventos fortes. Quando o ar é sugado, a rotação da Terra fá-lo rodopiar, o que provoca um abaixamento da pressão ao nível do mar, obrigando a água a subir. Forma-se então uma onda que é empurrada para cima por acção dos ventos. Quando a onda chega a zonas pouco profundas, "quebra" e é empurrada ainda mais para cima - é a chamada "vaga de tempestade". A do "Katrina" teve quase 10 metros e foi a mais alta até hoje registada nos Estados Unidos.

Há quem defenda que os furacões são cíclicos e têm pouco a ver com o aquecimento global, mas o que é um facto é que o seu número tem vindo a aumentar. E, entretanto, houve uma explosão da construção nas zonas costeiras, agora mais vulneráveis.

De acordo com Kerry Emanuel, do Massachusetts Institute of Technology, que estudou 4.500 tempestades no último meio século, a força média das tempestades registadas nesse período aumentou 50%.

Cientes desta ameaça, especialistas federais e estaduais elaboraram um plano para reordenamento das terras pantanosas no litoral de Nova Orleães. O plano deveria custar 14 mil milhões de dólares ao longo de 30 anos. Mas a Administração de George W. Bush recusou por causa do custo. Com as estimativas do custo do "Katrina" a atingir 150 mil milhões de dólares, o plano parece agora barato.

O valor das terras pantanosas na protecção das comunidades costeiras ficou bem claro no ano passado durante o maremoto na Ásia: onde havia pântanos virgens, o tsunami causou menores prejuízos. A Casa Branca pareceu estar consciente da importância desta protecção natural ao enviar um dos seus principais engenheiros nesta área para o Iraque, para refazer os pântanos que Saddam Hussein mandou secar. Isto levou os críticos a lamentar as prioridades do Presidente.

Além das políticas ambientais da Casa Branca, a reacção das autoridades locais, estaduais e federais à passagem do furacão também foi um desastre. A nível local, o presidente da Câmara, Nagin, só ordenou a evacuação da cidade na véspera da chegada do "Katrina". Depois, abriu o Superdome aos refugiados sem lhes dar qualquer ajuda ou enquadramento. Ficaram entregues a si próprios, à espera dos prometidos autocarros que nunca mais chegavam. Por seu turno, a governadora do estado da Louisiana, Kathleen Blanco, demorou a decretar o estado de emergência, o que teria acelerado a ajuda federal.

Ao nível central, a hesitação também teve consequências. O Pentágono esteve muito relutante em dar aos militares a primazia do comando das operações de ajuda, uma tarefa que incumbe normalmente à FEMA (agência que lida com as situações nacionais de emergência) e à Guarda Nacional. Relativamente a esta última, há quem recorde que o próprio Presidente Bush poderia tê-la "federalizado", como o pai fez após os tumultos de 1992 em Los Angeles. Esta situação também teria acelerado o resgate e as ajudas. Ou seja, ao nível político-administrativo dificilmente as coisas poderiam ter corrido pior.

Tradução de Aida Macedo

Texto publicado na revista Única de 10 de setembro de 2005