23 maio 2011 14:52

produtores de "The Tree of Life" que receberam no palco a Palma de Ouro em nome de Terrence Malick
Não houve surpresas: favorito desde o primeiro segundo, "The Tree of Life" impõs-se esta noite e levou o ouro de Cannes 2011.
23 maio 2011 14:52
Nenhum outro filme levantou divisões, emoções e debates tão apaixonados nestes 12 dias de festival e há muito tempo que tal não se via. Se formos fiéis a este aspeto, que de resto nos parece muito razoável e aquele que mais conta, podemos dizer que Terrence Malick arrancou hoje de Cannes uma Palma de Ouro que ficará na história e que ainda fará correr muita tinta. Era a Palma que todos esperavam.
Igual a si próprio e à lenda que criou, o cineasta americano não esteve presente na cerimónia do Grand Théâtre Lumière: o prémio foi entregue por Jane Fonda aos produtores Bill Pohlad e Dede Gardner. "Le Gamin au Vélo", dos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne e "Once Upon a Time in Anatolia", do turco Nuri Bilge Ceylan, venceram ex-aequo o Grande Prémio do Juri.
Ver para crer
Cannes 2011 foi um festival polémico, exigente, com vários candidatos 'palmáveis' e a escolha da obra de Malick exigiu certamente do juri (presidido por Robert de Niro) um trabalho de reflexão suplementar. É que "The Tree of Life" - repetimos - é um filme único. Parece não vir deste tempo e só o tempo o julgará.
"The Tree of Life" tem atrás de si o nec plus ultra da indústria americana (que o lançará em todo o mundo para a semana) mas está no oposto mais absoluto do cinema mainstream. Gerou até agora defesas assolapadas e ataques fidagais, sempre sem indiferença - mas por que será que nenhum destes (até agora) nos pareceu estar à sua altura?
E de pouco nos vale tentar esclarecer o leitor que aguarda humildemente um esboço de história ("mas este filme afinal fala do quê?"), dizendo que há aqui a memória de um casal dos anos 50 (Brad Pitt e Jessica Chastain) recordada (será sonhada?) pelo seu filho mais velho no presente (Sean Penn). Não é no terreno das convenções e da narrativa comum que Malick trabalha. Talvez Malick tenha precisado de 40 anos de cinema para chegar aqui.
"The Tree of Life" é de ver para crer, literalmente. Neste sentido, tem em última análise o condão de salientar aquilo que de mais puro existe no cinema: a relação (não transmissível) entre um só espectador e um filme. Ao que se vê e ao que se crê voltaremos, na próxima edição do suplemento Atual, já com a Palma estreada nas salas portuguesas: muito há ainda para dizer. Ou, como dizem os franceses, à suivre...
Os irmãos Dardenne e Nuri Bilge Ceylan, logo abaixo
"Le Gamin au Vélo", modelo acabado do cinema que os belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne têm vindo a pôr em prática, ainda que de forma irregular, nos últimos 15 anos e "Onde Upon a Time in Anatolia", a quinta longa-metragem do turco Nuri Bilge Ceylan, dividiram o Grande Prémio ex-aequo. O primeiro traz-nos um miúdo de 12 anos que é um poço de força e tenta recuperar o amor do pai, que o abandonou, encontrando depois uma mulher que se torna, a pouco e pouco, sua mãe adotiva, interpretada magnificamente por Cécile de France.
O "Once Upon a Time...", de Ceylan, leva-nos para a Turquia profunda e acompanha o interrogatório, estrada fora, de um grupo de agentes da polícia a dois homens que assassinaram um outro. Tentam identificar o local do crime, mas nas estepes da Anatólia a tarefa não é fácil. A ação decorre num tempo indeterminado que chama um passado de violência. Ceylan muda de registo. Menos contemplativo e à semelhança do cinema romeno contemporâneo, deixa-nos um filme que analisa o absurdo do quotidiano e a repetição dos seus gestos. É desse quotidiano que nascem lentamente as personagens. Duas horas e quarenta de inquérito.
Prémios de interpretação
Kirsten Dunst saiu de Cannes com a distinção de melhor atriz pelo seu trabalho no malogrado "Melancholia", o filme que fez de Lars von Trier persona non grata em Cannes. "Melancholia" é uma mudança profunda no trabalho do dinamarquês. Trier perdeu muitos dos seus seguidores mas ganhou outros com esta história em que uma noiva, com o casamento desfeito na noite de núpcias, assistirá ao fim do mundo. Desconfiamos que o magnetismo de Juliette (a personagem de Kirsten é o alter-ego que Trier sempre sonhou ter) é de tal forma grande que ela é capaz de desafiar a ciência e atrair Melancholia, o planeta fatal que está prestes a desintegrar a Terra, acabando com tudo aquilo a que damos o nome de vida.
Lars von Trier, 'filho' de Cannes (concorreu nove vezes pela Palma) não voltará mais ao festival. O prémio a Kirsten Dunst deve-lhe ter sabido a vingança. Bastante mais banal foi o prémio de Melhor Ator ao francês Jean Dujardin por "The Artist", uma comédia a preto e branco de Michel Hazanavicius sobre uma vedeta do cinema mudo que cai em desgraça com a chegada do cinema sonoro. Uma história de amor salva-lo-á.
Realização: merci!
Cannes distinguiu, com grande surpresa, o dinamarquês Nicolas Winding Refn com o prémio de Melhor Realizador por "Drive", filme muito mal amado em Cannes pela esmagadora maioria dos festivaleiros. Gostamos muito de "Drive". É a história de um duplo de Hollywood (Ryan Gosling) que também usa a sua perícia na condução para praticar atos ilícitos nas noites de Los Angeles. Parece salvar-se de tudo. Tem uma aura de super-herói: solitário, silencioso, palito nos dentes. Apaixona-se pela vizinha. Depois tenta salvá-la e mete-se em sarilhos com a máfia.
Gosling tem uma cara de pau de todo o tamanho e sorri de vez em quando neste filme de atmosferas que vai caricaturar, ao ralenti, o cinema de ação dos anos 80. De resto, é tudo anos 80 aqui, os carros, os ambientes, as letras do genérico, a história de amor e a humanização progressiva da personagem, que parece saída de uma BD. Se houvesse um prémio para a melhor banda sonora ele iria para Cliff Martinez pelo seu trabalho neste filme. A melhor canção do festival também está aqui: "A Real Hero (Feat. Electric Youth)", de um EP dos College.
Outros prémios
Num festival em que gostaríamos de ter visto Bertrand Bonello ("L'Apollonide") e Aki Kaurismäki ("Le Havre") no palmarés, Cannes premiou ainda Joseph Cedar pelo seu filme "Footnote" (representou Israel), na categoria de Melhor Argumento. "Polisse", da francesa Maïween, venceu o Prémio do Juri.
A Palma de Ouro da curta-metragem foi atribuída a "Cross", de Maryna Vroda. Já a "Caméra d'Or", que distingue a melhor primeira-obra de longa-metragem do festival, premiou "Las Acacias", filme argentino de Pablo Giorgelli.
"Arirang", de Kim Ki-duk (Coreia do Sul) e "Stopped on Track" (Alemanha), de Andreas Dresen, triunfaram ex-aequo na secção Un Certain Regard.