ARQUIVO Cannes 2011

Da Reboleira para Cannes

20 maio 2011 19:58

Francisco Ferreira, enviado a Cannes

Basil da Cunha com os seus atores Marlene Monteiro e Nélson Duarte

"Nuvem", curta-metragem do luso-suíço Basil da Cunha, passou hoje na Quinzena dos Realizadores. É o único filme português presente no festival.

20 maio 2011 19:58

Francisco Ferreira, enviado a Cannes

Nuvem (Nélson Duarte) é um rapaz da Amadora, de origem cabo-verdiana, que anda apaixonado pela rapariga do bar da esquina. Tem reputação de louco... e a rapariga não é de conquista fácil. Estamos pelos bairros da Reboleira e do 6 de Maio. Nuvem cruza então o caminho de um fulano de óculos escuros (genial aparição: parece um Wesley Snipes saído de um filme de Jarmusch) e ouve o veredicto: "se queres conquistar a dama, precisas de um peixe-lua." Cai como um pato na 'esparrela', desconhecendo talvez que, além de raro, o peixe em questão pode pesar duas toneladas. Ele pensa que é coisa de pescar à linha, como à rapariga. E num bairro em que se cruzam velhos pescadores a sério, agora desdentados, e uma juventude efervescente e apaixonada pelo hip hop, num bairro todo ele cabo-verdiano em que o crioulo é a língua-mãe, Nuvem, impecavelmente filmado por Basil, não desiste dos seus intentos amorosos: agora é preciso um isco de ouro, beber um copo de whisky... riem-se do rapaz e ele não percebe. Nem desiste. É um solitário à espera da sorte. Vai arranjar sarilhos. Surgem outras personagens (um palhaço que "vive das artes"), para as quais o quotidiano e a existência são bem mais sólidos que os sonhos do protagonista. Contudo, o delírio de Nuvem conquista num instante.

Basil da Cunha, 25 anos, filho de pai português e mãe suíça nascido e criado em Lausanne, estudou cinema na HEAD (Escola de Artes e Design de Genebra). É fã de Pedro Costa e Albert Serra. "À Côté", a sua terceira curta-metragem, venceu a secção portuguesa do Curtas Vila do Conde 2010. Numa das suas visitas a Lisboa, há pouco mais de dois anos, Basil apaixona-se por uma rapariga. Decide mudar-se para cá. "Ia instalar-me numa casa, mas o proprietário roeu a corda. Tinha duas horas para encontrar um sítio. Compro o jornal. A casa mais barata para alugar era na Reboleira. Nunca lá tinha posto os pés e acabei por 'encravar' ali. Não conhecia ninguém, não falava crioulo. Depois lá fiz grandes amigos. Foi com eles que fiz este filme." É certamente por isso que "Nuvem" é uma lufada de ar fresco, com a câmara sempre à altura das suas personagens, impermeável a um 'cinema social' de bairros de lata que, de resto, Basil detesta: "Fujo a sete pés da sociologia. O que eu queria era dar histórias a pessoas a quem ninguém dá histórias. 'Nuvem' é um filme romântico e musical. Com uma personagem que persegue um sonho." Basil escreve uma linha de narrativa e começa a filmar, com a ajuda de um amigo, o Machine (Pedro Diniz), que também foi seu ator e assistente: "fazia quase tudo". No som, Felipe Tavares trabalha por quase nada. Quanto ao Nuvem, Basil encontra-o num café: uma hora depois já estava a filmá-lo. "As ideias surgiam no momento. Não havia dinheiro nenhum. Apesar de tudo, queria comer e beber decentemente durante a rodagem. Associei duas produtoras suíças ao projeto e uma portuguesa, O Som e a Fúria, que emprestou material. 'Nuvem' extinguiu as hierarquias de uma rodagem clássica. Toda a gente fez parte do processo criativo. Deu para fazer coisas muito simples com a Canon 5D e outras mais elaboradas, como aquele plano filmado de um telhado com três personagens, inspirado no 'Fin de Partie' de Samuel Beckett."

Basil da Cunha representou hoje Portugal em Cannes com um filme luso-suíço, falado em crioulo, feito sem dinheiro. E foi bem recebido!