A sociedade portuguesa responsável pelo atentado à família real

Mitos carbonários

2 fevereiro 2008 0:01

José Gabriel Viegas

Das origens antigas da Carbonária até aos valores da sociedade secreta que esteve por detrás do regicídio. 

2 fevereiro 2008 0:01

José Gabriel Viegas

Poucas organizações políticas, secretas ou não, terão sido tão ricas em fantasmas e mitos. Apesar da notoriedade de que gozou no Ocidente, ao longo de todo o século XIX e, mesmo, até aos nossos dias, as suas verdadeiras origens, estruturas e objectivos permanecem envoltos numa vasta nebulosa de suposições e contradições. E, se se conhece bem a gestação e métodos da Carbonária Portuguesa de Luz de Almeida, responsável pelo regicídio de 2007, o mesmo não sucede quanto à história da sociedade a que foi buscar o nome. Vilipendiados por uns, exaltados por outros, os "carbonari" ficaram na história como os grandes protagonistas da epopeia dos nacionalismos republicanos da Europa do Sul e da América Latina. Na realidade, essa fama é sobretudo criada pelos "restauracionistas", na ressaca da Revolução Francesa e da aventura napoleónica, que classificam com uma etiqueta única a imensa nebulosa das sociedades secretas revolucionárias que vão agitar todo século XIX.

Por outro lado, é também importante notar que só recentemente metodologias históricas são de facto aplicadas nos estudos sobre este tipo de sociedades secretas, até agora vistas sobretudo à luz de textos apologéticos ou da propaganda adversa.

Foram atribuídas à Carbonária múltiplas origens míticas, algumas das quais ainda hoje são aceites como boas, indo dos "carbonari" do século XIII (os Guelfos, que defendiam o poder pontifical contra os Gibelinos, partidários do Império), até aos Druidas celtas e a Salomão. Outras teses fazem-na descender das sociedades dos "Bons Cousins Charbonniers", lenhadores e "carvoeiros" franceses, das florestas do Jura e da Franche-Comté, organizados à semelhança de muitas outras guildas e confrarias de ofícios medievais e que tinham como padroeiro S. Teobaldo. Mas essas sociedades são muito anteriores ao fenómeno político do "carbonarismo" italiano ou francês de novecentos.

Embora muitos autores considerem que a Carbonária tinha as suas origens remotas em Itália, de onde teria passado a França e Espanha, mais tarde a Portugal, parece mais credível a tese de que se trata de uma criação política, em 1808, de Felippo de Buonarroti - admirador da República das Virtudes de Robespierre, exilado de França depois de ter participado na tentativa da chamada Revolução dos Iguais, contra o Directório.

Os primeiros carbonários teriam sido, assim, sobretudo antibonapartistas, na sua maioria  italianos, que se opunham a Joachim Murat, imposto como rei de Nápoles por Napoleão. Inicialmente dominado por militares, incluindo oficiais de altas patentes, o movimento estende-se rapidamente a outras regiões de Itália, designadamente aos Estados Pontíficos, onde se implanta com sucesso. É de referir o caracter assumidamente cristão desse carbonarismo, com rituais muito sumariamente adaptados dos rituais maçónicos - em que, por exemplo, o termo "iniciação" é substituído por "baptismo", o de "profano" por "pagão", em que abundam os símbolos crísticos, como a coroa de espinhos e em que os "trabalhos" são conduzidos sob os auspícios de S. Teobaldo e à glória de Jesus Cristo.

Esse carácter crístico é, aliás, salientado num documento atribuído a Joseph Briot, um dos fundadores da Carbonária italiana: "É impossível que em Itália as inclinações religiosas permaneçam inteiramente estranhas a uma instituição tal como a Carbonária. A descrença foi muitas vezes associada ao amor pela liberdade e ao ódio à  opressão. Os Carbonários, ao contrário, mostram uma fé sincera na religião de Jesus, a que se encontra no Evangelho, liberta de todos os elementos estranhos que os teólogos têm introduzido em dezoito séculos". É assim que vários autores encontram nas primeiras Carbonárias sinais dos diversos fundamentalismos medievais cristãos, associados a uma proposta política baseada no regresso aos valores essenciais do cristianismo primitivo - pondo em causa os retrocessos sociais do restauracionismo, assim como os faustos do Vaticano. Esse carácter cristão ir-se-á progressivamente esbatendo ao longo do século XIX na maioria da sociedades secretas ditas carbonárias, passando para certas formas de panteísmo nalguns casos, aceitando o agnosticismo e privilegiando cada vez mais a acção política radical - mas mantendo sempre, curiosamente, a simbologia crística introduzida por Buonarrotti de par e variando, segundo os casos, com enxertos da maçonaria dita "egípcia" de Cagliostro, alguns elementos de neo-pitagorismo e, mais tarde,  de influências teosóficas.

Grosso modo, esta foi a tendência observada em Portugal, onde a Carbonária Lusitana do General Joaquim Pereira Marinho, fundada em Coimbra em1842 (ou 1848), na linha dos "carbonari" italianos e sob a influência ideológica de Mazzini, "assume uma visão religiosa do mundo e da vida", como salienta historiadora Maria Manuela Tavares Ribeiro. E que subsistirá ainda, 60 anos mais tarde, na Carbonária Portuguesa de Luz de Almeida e Machado Santos, com a exaltação do sacrifício e de uma certa forma de  martírio pessoal, inclusive até à morte.

Versão integral do artigo publicado na edição do Expresso de 2 de Fevereiro de 2008, Actual, página 18.