20 junho 2007 0:00
O poeta Eugénio de Andrade escreve sobre o painel de Júlio Resende.
20 junho 2007 0:00
Toda a gente sabe que no Porto, entre a Sé e a Ribeira, as casas se empinam umas nas outras como os acrobatas no circo. Num ímpeto barroco, as quelhas e os becos sobem e descem pelo morro, multiplicam-se em degraus e degraus escorregadios, e só por escassos momentos afrouxam para ganhar ânimo em patamares lamacentos, os cachorros focam no lixo ou em poças de água choca, à mistura com as crianças. Nas paredes escorre uma espécie de suor frio, e não é do nevoeiro, nem da sombra, que nestas vielas é viscosa até no pino do verão; não, no Barredo a humidade vem das entranhas do pardieiros, atravessa a espessura dos tabiques, extravasando para os pátios e as escadarias. Há quem habite entre aquelas paredes, e sofra, e faça filhos, e até sonhe, os olhos pregados ao postigo donde se avista o rio de pele suja e triste, ou uma, duas, três gaivotas; essas não faltam aqui no Douro, que é o nome do rio, e na véspera das chuvas sobrevoam S. Vítor, arriscam-se até S. lázaro: cá estão elas, são quatro, pousam agora num telhado baixo, em frente da minha janela um dia hei-de escrever um poema onde diga delas coisas mais bonitas do que Lawrence disse dos ciclames sicilianos.
Diz-se, e eu acredito, que é na Ribeira que pulsa o coração do burgo. Aqui podes ainda ouvi-lo bater como no tempo do senhor D. João I, ou de seu filho D. Henrique, que também por aqui andou a arrebanhar homens, navios e cabedais para as suas empresas, afirmando Zurara que «era ali o tráfego tamanho em aquela ribeira que, de dia ou de noute, nunca estava só nem os marinheiros não eram pouco cansados em arrimar tamanha multidão de frasca». É exactamente aqui, no meio destas criaturas, que não serão atraentes pela sua beleza mas por certa rudeza e orfandade, embora possam de vez em quando surpreender-nos por uma natural e insuspeitada gentileza, é aqui, dizia eu, que poderás encontrar ainda alguns herdeiros dos gestos e das falas de gerações e gerações de barqueiros e estivadores, de regateiras e carrejões, gente que vivia quase só do rio e do mar, mais parca de haveres que de sentimentos, com muitas pragas na boca e alguns pedacinhos de sal nos cabelos, porque naqueles tempos o rio entrava-lhes pela casa e ao cais atracavam todos os dias embarcações vindas de muitas partes, carregando e descarregando vinho e peixe, azeite e fazendas, fruta e carvão. E o que os barcos não traziam vinha em carros de bois, porque a Ribeira sempre foi mercado: de flores, fruta, hortaliça, pão e «qualquer outro género de comestico», como refere antiga postura municipal. E o mercado era debaixo das arcadas, não só por causa do tempo, que nesta cidade nunca foi amável, mas também pelo vinho verde e pelas iscas, que ali ficavam mais à mão.
Embora a Ribeira já não seja assim agora tem turistas, restaurantes com nome francês, barracas de bugigangas pregadas ao chão, vira-ventos de plásticos, louças de Barcelos, se não forem das Caldas já para o fim da tarde, a praça fica mais limpa e dá ainda algum gosto vê-la: as pombas vieram por aí abaixo juntar-se às gaivotas, dois ou três pescadores infindamente parados sonham com tainhas e bogas e enguias e robalos, de que o rio já foi farto, e há aqueles garotos correndo atrás duma bola até à demência, enquanto outros, quando o calor aperta, se despem e lançam à água, indiferentes às grandes manchas de óleo, ás folhas podres de couve, aos preservativos boiando à tona. Um dia, quando as radiações da lixeira nuclear de Aldeadávilla atingirem a Ribeira, a desolação será maior: as laranjas, as gaivotas, as crianças deixarão de brilhar ou correr ou gritar nesta praça, só o vento dançará com a poeira a dor do mundo.
Agora vinde cá, que vos quero dizer uma coisa. Como sabem, o grande cronista desta terra foi Camilo castelo Branco, esse diabo, que não é tão feio como o pintam. Mas depois de Camilo vieram outros: o Ramalho, que era homem de respeito, o Raul Brandão, que tinha um olho muito fino para os pescadores da Foz e daquele mar, e já nos nossos dias a Agustina, que fala do Porto ora com azeda melancolia ora com incomparável sedução. Mas a cidade tem outro cronista admirável, em que se não repara tanto por não se servir de palavras. É de Júlio Resende que estamos a falar. Agustina e Resende são em rigor contemporâneos, mas o olhar inquisitorialmente poético de ambos contempla realidades muito diferentes. O mundo que despertou o interesse da romancista é o da burguesia decadente, o da aristocracia rural, com algumas incursões às esferas da finança e da política: ou seja, o mundo pelo qual a pintura de Resende tem um soberano desprezo. A gente a que sempre procurou dar corpo e alma, e que lhe sai ao caminho mas pega no lápis ou no pincel, é aquela a que Fernão Lopes chamou arraia-miúda. Isto, que nunca passou despercebido àqueles que seguiram empenhados a sua obra, tornou-se pura evidência a todos quantos tinham olhos na cara a partir de Ribeira negra, o magnificente historial da miséria e grandeza da população ribeirinha do Porto, exposto pela primeira vez em 1984 no Mercado Ferreira Borges.
Há uma brutalidade nesta pintura, digamo-lo sem qualquer hesitação, brutalidade que consiste em obrigar-nos sem trégua a pensar que o homem é o mais mortal dos animais, que o seu corpo não cessa de ser corroído pela lepra do tempo, que o esplendor da sua juventude se converte com facilidade na mais grotesca paródia de si próprio, que tudo nele está inexoravelmente votado à morte. É uma crueldade, é certo, mas a compensá-lo há também em Resende uma infinita piedade por estas criaturas cobertas de farrapos, quase sempre mulheres envelhecidas muito antes de serem velhas, porque tudo lhes faltou excepto o mais amargo da vida, e a quem também coube em sorte, apesar de tudo, semear a terra de alegria. Se pensais que exagero, olhai este painel de cerâmica, variações da anterior Ribeira Negra, que lhe encomendou a Câmara do Porto justamente para a Ribeira, num gesto análogo ao da Câmara de Barcelona para murais e esculturas de Joan Miro. Com mão aérea e certeira, o pintor, uma vez mais, povoou essa centena de metros quadrados de grés com as suas visões líricas ou dramáticas: crianças, mulheres, adolescentes, animais repartem entre si o espaço e o ritmo, a cor e a luz da sua cidade, com um lúcido ardor que é o outro nome da sabedoria. Posso garantir-vos que desde os seus primeiros trabalhos*, toda esta figuração, vinda do mais rasteirinho da terra**, estava destinada a ascender pela sua mão a essa suprema dignidade que só a arte confere. Eu creio que o que se faz aqui é mais do que perpetuar o rosto de uma cidade, de um país é dar, apesar de tudo, algum sentido à vida.
*Pascoal, 1942; Rua, 1946
**Alentejano, 1952; A Lota, 1956