ARQUIVO O que a censura cortou

A primeira entrevista de Álvaro Cunhal

6 fevereiro 2009 20:15

Quando o censor tinha dúvidas recorria ao carimbo de 'Demorado'. Era a antecâmara da posterior proibição.

6 fevereiro 2009 20:15

Seria a primeira entrevista de Álvaro Cunhal a um órgão de informação português - não clandestino, entenda-se. Entre duas dezenas de delegações à Conferência dos Partidos Comunistas dos países capitalistas da Europa, que se realizou em Bruxelas, figurava a do PCP, presidida pelo secretário-geral, Álvaro Cunhal. O enviado do Expresso, A. Martins Lopes, entrevistou o líder comunista, ainda que lhe tenha sido "proibido levar máquina fotográfica". Cunhal sublinhou que foi "a primeira vez que um jornalista português, portanto um jornal legal, me pede uma entrevista". E começou por salientar: "Antes de mais, devo dizer-lhe que tenho poucas esperanças de que a censura autorize a publicação do que eu possa pensar sobre o assunto. No entanto..." Estava na cara: o Exame Prévio nada autorizou. Nem a entrevista nem duas outras peças sobre a conferência. Numa, o repórter sublinhava a "fidelidade" do PCP "à linha orientadora de Moscovo". Outra era sobre a constituição das delegações. Das quatro peças sobre a conferência, saiu apenas uma, com onze cortes. A declaração final "foi adoptada após 'uma discussão livre e aprofundada que se desenrolou numa atmosfera de fraternidade e de solidariedade internacionalistas'."

Na Faculdade de Letras do Porto, "não se sabe ainda quando (e se) poderão os estudantes (...) eleger os directores da respectiva associação. Por mais de uma vez as urnas foram retiradas por 'vigilantes' à ordem do director da Faculdade, prof. António Cruz", que chegou a recorrer à polícia. A notícia foi proibida, tal como as reivindicações dos professores dos ensinos preparatório e secundário. Em Lisboa, a situação no ISE levou um corte. Os alunos de Teoria Económica II recusaram-se "a aceitar os professores escolhidos", enquanto o 3º ano decretou "greve à Matemática".

À vida foi mais de metade de uma carta sobre a diocese do Funchal, há quase dois anos sem bispo, baseada na prestigiada revista "Informations Catholiques Internationales".

De Moçambique, vinham duas notícias, ambas com um toque. Proveniente da África do Sul, um carregamento de ouro "seguirá dentro de curto prazo para Lisboa, por via aérea". Na capa, vinha a paralisação da construção civil na província, provocada pela falta de ferro.

A coluna 'Portugal Político' foi golpeada cinco vezes. "Recentemente, as Lajes serviram para o contínuo abastecimento de aviões americanos com destino conhecido em pleno conflito israelo-árabe. As sequelas deste auxílio foram bem notórias da parte dos árabes afectados". "As últimas palavras de Costa Gomes calaram fundo em todos os que conhecem a situação presente de Moçambique".

A mesma visita à colónia portuguesa do Índico era o tema central da coluna militar, que levou dois cortes. As declarações de Costa Gomes "evidenciam certas preocupações específicas, decerto relacionadas com as reacções das populações aos últimos ataques da Frelimo na região de Vila Pery e Inhaminga".

Os trabalhos da Assembleia Nacional figuravam na primeira página. O censor não gostou nada do arranque da prosa: "Reduzidas as suas funções deliberativas, o debate da proposta de lei sobre o regime do plantio da vinha funciona mais como um pretexto para a Assembleia Nacional se manter aberta, pois que é mais como uma câmara de eco política que temos de encarar esta semana a sua actividade". Esta foi uma das três incisões.

Das seis peças que levaram com o carimbo 'Demorado', cinco não foram publicadas na edição de 2 de Fevereiro de 1974. Duas, eram acerca do aumento dos preços; outra, noticiava a exploração de petróleo "na plataforma continental metropolitana"; outra ainda dava conta de um acórdão do Supremo quanto ao processo das auto-estradas; a última registava os novos salários dos empregados de escritório da indústria química. Também a revisão do contrato dos motoristas apanhou com um 'Demorado'. O texto viria depois a ser "autorizado parcialmente", com um único risco azul: a proposta de criação de um "subsídio de prisão.

Central da NATO nos Açores

"Técnicos da NATO deram o seu acordo à instalação, na ilha de São Miguel, de uma central de telecomunicações para serviço dos objectivos da organização. Após a visita, há cerca de uma semana, de um grupo de peritos (em número superior a uma dezena), ficou mesmo escolhido o lugar onde se situará a antena: nos Remédios, concelho da Lagoa. Não diminui, pois, ao contrário do que alguns anteviam, a importância dos Açores, derivada da sua posição ímpar no Atlântico Norte". Etc. O artigo, do correspondente em Ponta Delgada, J. Soares Botelho, era para a pág. 3, mas foi proibido.

TERCEIRO

Para a capa, estava previsto o título "Terceiro ataque da Frelimo a Inhaminga". Foi eliminado o numeral ordinal. Já no texto, saltou a frase "pela terceira vez numa semana".