Pequeno ecrã

Foras de Série

9 fevereiro 2008 0:00

Há quem defenda que as grandes narrativas passaram da literatura para o cinema e daqui para a ficção televisiva. Mas de que falamos quando falamos de séries de TV?

9 fevereiro 2008 0:00

LostPerdidos24

A greve mostrou não só o peso dos sindicatos como a importância real da escrita na produção das séries. Concretamente, referimo-nos às séries dramáticas de "prime-time", programas com periodicidade semanal, que apresentam histórias em continuação ou circunscritas a episódios singulares. Se os argumentistas fossem fáceis de substituir, não teria havido interrupções. A verdade é que muitas séries são trabalho de autor, e custa imaginá-las sem ele. Não será exagero considerá-las do melhor que se faz hoje na televisão. Produto sofisticado tanto a nível cinematográfico como de conteúdo, uma série de "prime-time" requer algo mais do que imaginação rotineira e diálogos vulgares. A mais sumária enumeração dos temas sugere o nível que se exige. Um escritor entediado e com uma vida sexual agitada. Um homem que se faz prender para ajudar o irmão injustamente condenado a evadir-se. Um mafioso com problemas psiquiátricos e de família. Um rapaz que tem o poder de ressuscitar os mortos com o toque e a quem é proposto um negócio lucrativo. Uma família de mormons fundamentalistas e polígamos que tenta sobreviver no mundo moderno.

Várias dessas séries são pelo menos tão boas como um filme de qualidade. Outras são melhores do que a maioria dos filmes. Não é surpreendente que assim aconteça. De certo modo, o cinema e a ficção televisiva seguiram evoluções opostas. "Os filmes infantilizaram-se", diz Nuno Artur Silva. "Com o advento dos DVD, o público adulto tende a ficar em casa, e o cinema torna-se muito uma coisa de adolescentes." Filmes de super-heróis e comédias românticas abundam hoje em dia. As séries, mantendo esses géneros, tornaram-se mais adultas, explorando temas de situações, relações, psicologia. Mesmo em termos de géneros, a variedade é muito grande. Há desde a acção à fantasia, passando pelas inevitáveis séries de polícias, de médicos e de advogados. Os cruzamentos, aliás, são cada vez mais frequentes. Dr. House, por exemplo, pode ser considerado um cruzamento entre a série de médicos e a de detectives.

Embora muitas das séries passem em Portugal, só uma pequena percentagem dos portugueses as vê. No horário nobre dos canais abertos, durante a semana, elas mal existem; só a RTP2 ainda passa algumas. CSI (SIC) e Dr. House (TVI) surgem depois da meia-noite. Para encontrar a maior parte, no entanto, temos de ir ao cabo: AXN, SIC Mulher, SIC Radical, os vários canais da FOX... Segundo informações recentes, o cabo, no seu conjunto, já concorre em pé de igualdade com os canais abertos, pelo menos em zonas como a Grande Lisboa. Mas essa audiência encontra-se dispersa pelos vários canais. Se quisermos saber que ficção vê realmente a maioria dos portugueses, a resposta é: novelas. Seja na versão literal, seja na juvenil, o padrão frequente são os enredos estereotipados, mais ou menos sentimentais, fáceis de entender, com personagens fisicamente apelativos e uma realização meramente funcional. João Pedro Nunes, presidente da Associação de Argumentistas, usa mesmo a expressão "monocultura" a esse respeito. Tal como noutras áreas da vida portuguesa, verifica-se uma crescente bifurcação entre as chamadas classes A e B e as outras. Se o público mais educado não encontra matéria que o satisfaça nos canais generalistas, vira-se para o cabo. Se os canais generalistas desistem de procurar esse público, cada vez mais se concentram no outro. O resultado é que a TV, vista de fora, cada vez é mais monótona. Isso põe em causa a sua alegada função unificadora. Quando se verifica uma distinção tão clara entre públicos, que coesão cultural pode haver?

A comparação com os EUA é ilustrativa, mas só até certo ponto. O "prime-time" americano é largamente preenchido com ficção, embora não seja qualquer tipo de série que lá passa - as mais aventurosas (por razões de linguagem, violência, conteúdo sexual, etc.) passam no cabo. Recentemente, a série Dexter, sobre um "serial killer" que trabalha na polícia, foi acusada de criar empatia no público por um "serial killer". O protagonista só mata gente que cometeu crimes repugnantes e escapou ao castigo, portanto trata-se de fazer justiça, numa lógica de vigilantismo. O problema é que a série, tendo começado no cabo, vai estrear na CBS, rede de sinal aberto. Uma importante organização, o Parents Television Council, pediu formalmente à CBS que não a passasse, alegando que não há "editing" possível que cure a sua falha original. A CBS adiou a estreia por duas semanas.

A polémica ilustra a importância que é atribuída à ficção como conduta de valores na sociedade americana. O próprio facto de contestar significa que é levada a sério. De resto, não são só as séries dramáticas a merecer esse tipo de atenção. Mesmo as "sitcoms" têm sido objecto de protestos e por vezes de boicotes. Também elas são cuidadosas na escrita, a esse e a outros níveis. O que não passa no "prime-time" americano são novelas; quando muito, tem havido séries que utilizam elementos característicos de novela (Donas de Casa Desesperadas, Melrose Place, Dallas), mas num contexto formal de séries, com os valores de produção correspondentes.

O comportamento dos canais portugueses, por contraste, é fácil de perceber. As audiências preferem programas em português, o que nada tem de invulgar; pelo mundo fora, as pessoas tendem a preferir programas na língua nativa. Quanto à escolha do modelo novelesco, não será escandaloso afirmar que corresponde ao nível cultural médio da população portuguesa. Acrescem os constrangimentos de produção. Fabricar uma série com a qualidade de produção, digamos, dos Sopranos seria pura e simplesmente impossível em Portugal, como em praticamente qualquer outro país que não os EUA. O dinheiro, o tempo, a quantidade de gente envolvida seriam impensáveis noutros países. E mesmo aspectos como a escrita, a representação, a qualidade da realização, o "timing", etc., não surgem do nada. Longas tradições criativas produzem os seus frutos, e a ausência das mesmas constitui uma limitação decisiva.

Parece um círculo vicioso. Como quebrá-lo? João Nunes acha que em parte é uma questão de prática. "Com o tempo, tem-se vindo a melhorar. Há uma evolução enorme desde as primeiras novelas." Se os canais tivessem a coragem de encomendar programas em géneros diferentes, a evolução seria muito mais rápida. Claro que tudo isto pressuporia um acréscimo de investimento. Produzir sai caro, e nada faz prever que as limitações desapareçam. Mesmo o respeito pelos autores não abundará. Segundo Nuno Artur Silva, a situação típica aqui é a falta de controlo por parte do argumentista. "Muitas vezes, os 'scripts' são alterados sem o autor saber." Para já não falar de aspectos financeiros, que por vezes põem o argumentista ao nível de um técnico sem especial qualificação.

Comprar séries estrangeiras, evidentemente, sai mais barato do que produzir. Já houve um tempo em que o horário nobre estava cheia delas. Era o tempo da Família Bellamy, de Brideshead Revisited, da Jóia da Coroa, do Sim, Sr. Ministro... A RTP existia sozinha na paisagem televisiva. Com a chegada da concorrência na forma dos canais privados, esses luxos deixaram de ser possíveis. Note-se que até as novelas brasileiras, sem terem desaparecido, foram sendo gradualmente substituídas pelas portuguesas. Para quem gosta de séries e não tem cabo aconteceu na pior altura. Com efeito, nunca houve séries tão complexas. Há 13 anos, um crítico literário do "New York Times" falou das séries dramáticas de então como as herdeiras dos grandes romances do século XIX. A arte de contar uma história em episódios, a exploração realista das vidas da classe trabalhadora e da classe média, a própria qualidade da escrita aproximavam argumentistas como Steven Bochco (Hill Street Blues, NYPD) e Robert Nathan (ER) de romancistas como Dickens e Balzac.

Desde essa altura, houve um factor determinante chamado cabo, e dentro do cabo houve a HBO. Muitas das melhores séries têm sido feitas para esse canal. A HBO é responsável por um esforço constante de ultrapassar os limites, tanto morais (linguagem, violência, sexo) como criativos. Para ter ideia da variedade, basta pensar em três das suas séries mais importantes: O Sexo e a Cidade, Os Sopranos, Sete Palmos de Terra. A última é o tipo de série em múltiplas camadas, extremamente bem escrita, subtil, que em Portugal só poderia passar na RTP2. O aparente tema funerário - a história centra-se numa agência funerária, e a cena inicial de cada episódio é um óbito - constitui um pretexto, embora não irrelevante, para explorar as relações entre os vários personagens e a sua psicologia. O diálogo com frequência sugere mais do que mostra. Além de ser entretido e comovido, o espectador fica com a sensação de que a sua inteligência foi estimulada e até, possivelmente, que aprendeu alguma coisa.

As mesmas qualidades encontram-se nas outras duas séries, que se tornaram muito mais conhecidas. Não é necessário referir as imitações a que O Sexo e a Cidade deu origem. Os Sopranos tem sido igualmente influente, mas não forçosamente por via de cópia (a série, aliás, já era assumidamente inspirada no filme Goodfellas, de Martin Scorsese, que por sua vez não era alheio ao Padrinho, que por sua vez...). O mais determinante nos Sopranos é a exploração da ambiguidade, da capacidade humana para conter ao mesmo tempo brutalidade e sensibilidade, cálculo e dor. Tony Soprano, herdeiro de um negócio familiar problemático, aproxima-se da crise de meia-idade. Tem problemas com a mãe e vai ao psiquiatra.

Vários aspectos do personagem reflectem a experiência do autor da série. David Chase, cujo nome esconde a origem italo-americana, teve problemas semelhantes com a mãe e também fazia terapia. Mesmo antes da série já tinha fama de escrever coisas negras, de uma ousadia pouco frequente em televisão. Colegas seus como Alan Ball (Sete Palmos) e David Kelley (Picket Fences, Ally McBeal) não são menos pessoais. Trabalho colectivo, uma série televisiva também pode servir para uma expressão criativa individual. Obviamente, isso implica um certo grau de controlo. Nas séries dramáticas, ao contrário dos filmes, os argumentistas costumam ser a figura principal. Por vezes, são mesmo eles a realizar, e um ou outro já transitou daí para o cinema. O exemplo mais recente será J.J. Abrams, cujo trabalho em Lost lhe valeu ser convidado para dirigir Missão: Impossível III, bem como o agora estreado Cloverfield.

O recém-nomeado director dos canais TV da Lusomundo, José Navarro de Andrade, tem muito material com que trabalhar, mas receia os efeitos da greve. "Pode ser um tsunami", diz, referindo o habitual calendário apertado ("pitchings", "pilots", produção) da televisão americana. "Nesta altura já se deviam estar a produzir as séries da próxima temporada", diz. Mas esta também é uma história com mais que uma dimensão.