Cultura

"As bombas não fazem milagres"

25 abril 2014 20:04

Alexandre Costa (texto) e Nuno Botelho (fotografias)

O filme "Outra Forma de Luta" é centrado nas respostas de Carlos Antunes às perguntas deixadas por Nuno Bragança

Carlos Antunes, ex-membro do PRP e das Brigadas Revolucionárias, falou ao Expresso sobre o envolvimento de católicos progressistas na luta armada contra o fascismo, a propósito da estreia do filme "Outra Forma de Luta", este sábado, no festival Indie Lisboa,

25 abril 2014 20:04

Alexandre Costa (texto) e Nuno Botelho (fotografias)

Dois dias antes de morrer, o escritor Nuno Bragança deixou a Carlos Antunes, seu amigo e ex-camarada das Brigadas Revolucionárias, 13 perguntas sobre a sua história de vida. Perguntas que iam desde a sua passagem à clandestinidade no PCP, passavam pela rutura com este partido, a luta armada contra o Estado Novo através das Brigadas Revolucionárias, até à sua posição sobre as F.P.25 de Abril.

Cada pergunta foi feita no topo de uma folha quadriculada A4; foi esse o espaço que o escritor Nuno Bragança deixou a Carlos Antunes para responder. A morte inesperada de Bragança levou a que não se chegasse a conhecer as repostas às suas perguntas e que Antunes não percebesse bem a sua finalidade. 29 anos depois, surge uma resposta em forma de filme, pela mão do realizador João Pinto Nogueira.

"Outra Forma de Luta" enquadra as declarações de Carlos Antunes com registos de arquivo da RTP e com a apresentação teatralizada de episódios que Nuno Bragança relatou no seu romance "Square Tolstoi", sobre o seu envolvimento nas Brigadas Revolucionárias.

A explosão de uma bomba nas instalações da NATO na Fonte da Telha a 7 de abril de 1971 foi a primeira ação armada do grupo. A última seria um ataque ao navio "Niassa", que partia com tropas para a Guiné a 9 de Abril de 1974.

O Expresso entrevistou-o a propósito de "Outra Forma de Luta", que estreia amanhã no cinema São Jorge, dentro da programação do festival IndieLisboa dedicada ao 40 Anos do 25 de Abril.

 

Em que medida os 15 anos da sua vida que passou na clandestinidade o marcaram como pessoa? Quando se passa tanto tempo nessa situação marca sempre. Não quer dizer que seja apenas mau. Há anos, anos e anos de que não tenho uma fotografia minha. Não é por acaso que o primeiro livro da biografia que estou a escrever chama-se 'Incógnito'. Fui sempre um bocado incógnito. Ainda hoje, se posso, passo despercebido.

Uma marca boa é não pessoalizar muito o poder. Nós estávamos tanto no limite do suportável na clandestinidade, que quem estava lá na esperança de ter o poder estourava. Víamo-los a estourar um a um. Um clandestino, para continuar bom da cabeça, tem de ter um afastamento do dia-a-dia. Não pode estar a fazer a luta para amanhã. Tem de fazer a luta sem esperança de amanhã, sem nenhum amanhã. Nesse aspeto, marca-me negativamente porque eu não tinha vocação de poder. Mas o problema é que isso me dava gozo. Este mundo personaliza muito o poder. E eu tenho mais gozo em ser contrapoder.

Negativamente, o pós-25 de abril para mim foi um momento difícil de adaptação. Eu tinha muitos medos que não tive na altura em que passei pelas coisas. Suportei bastante bem as condições de clandestinidade e depois mais tarde tive terrores nocturnos. É um pouco como quando você tem um desastre de automóvel e fica sempre com isso na cabeça e vem-lhe quando está mais débil, indefeso, que é quando está a dormir.

 

Jorge Silva surge como Nuno Bragança nas cenas baseadas no romance "Square Tolstoi"

Jorge Silva surge como Nuno Bragança nas cenas baseadas no romance "Square Tolstoi"

A participação do Nuno Bragança nas brigadas representou uma ponte para com os meios católicos? Claro. Eu estava no exílio. Era responsável pela organização do PC em França e interessava-me por um filósofo francês da direção do Partido Comunista Francês que tinha que a determinada altura iniciou o diálogo com os católicos e os cristãos. Estava a acontecer o Vaticano II e tudo isso foi muito importante para me despertar para esse lado, apesar de toda a vida ter sido um ateu bastante militante.

O Nuno Bragança era muito crítico dos meios conservadores da Igreja Católica, achava mesmo que eram o cimento ideológico do regime salazarista. Mas também era crítico de todo um conjunto de pessoas da idade dele, filhos de famílias conservadoras que se tinham desligado desse conservadorismo devido à guerra colonial. Aproximou-se das concepções da luta armada por essa via e pôs-me em contacto com uma série de gente que estava na mesma onda, como o Nuno Teotónio Pereira. Não foi através dele, mas foi da mesma forma que conheci o padre dos Jerónimos, Felicidade Alves, que é talvez o padre mais ínvio e notável de Lisboa, porque é o padre que servia o Presidente da República e fez uma ruptura com a guerra colonial.

Essa gente nunca foi considerada, mesmo os historiadores ainda têm dificuldade em considerar a importância dos católicos na luta anti-fascista. Se fosse católico diria que foi quase um milagre que se tenha dado esse encontro entre nós e eles. Porque isso permitiu-nos romper com a concepção de organização clandestina que se tinha até aí e escapar ao controle da PIDE. Tendo a Igreja, a possibilidade de utilizar os bens da Igreja, os seminários, as paróquias, as quintas da Igreja, as ordens religiosas da Igreja. Por exemplo, eu vivi nos dominicanos, com o Frei Bento. Quando eles nos descobrem já é demasiado tarde, nós já tínhamos muita autonomia dentro desse sector dos católicos, o que nos permitiu resistir até ao 25 de Abril com sucesso. O peso disso na luta clandestina nunca foi bem avaliado.

 

No filme tentou responder com as respostas que daria há 29 anos, quando recebeu as perguntas. O que diria agora em relação a Otelo Saraiva de Carvalho?Confirmava e ampliava os defeitos que naquela altura percebia nele. Eu sou um bocado vítima do Otelo. Não gosto de aparecer como vítima de nada, mas o tipo cada vez que fala... em cada comemoração do 25 de Abril, há uma quantidade gente que me telefona a dizer 'ele disse que eram os teus homens, os das FP's'. É uma história completamente fantasista. Completamente. Ele não suporta a realidade. É um homem que tem um conflito permanente com a realidade e com a verdade.

Francisco Nascimento surge como Carlos Antunes, Jorge Silva como Nuno Bragança, Dina Félix da Costa como Isabel do Carmo, Rafael Freire como Manuel Alegre

Se voltasse atrás no tempo, que coisas faria hoje diferente? Depois do 25 de Abril, nunca acreditei que a nossa diferença com o reformismo fosse tão profunda. Eu sabia o que é que a casa gastava, mas admiti várias vezes fazer alianças com o PCP. Mas nunca pensei que eles colaborassem no 25 de Novembro, no triunfo da contra-revolução. É um facto que a base do PC não colaborou, mas a direcção sim. A correlação de forças era tão tão tão favorável à esquerda, que foi quase uma vergonha como o 25 de Novembro se pôde implantar com meia dúzia de mercenários. Foi necessário dividir o espaço dos trabalhadores e surpreender para que isso fosse possível.

Nós, com a direcção político-militar que tínhamos, oficiais destacados nesse processo, e simultaneamente com o SUV (Soldados Unidos Vencerão), que eram uma força muito considerável dentro dos quartéis, não era preciso dar um tiro. Apenas estar calmo e dizer 'deixa-os vir, que a gente resolve o problema'. Foi necessário a implicação do Otelo nisso. O Otelo que fala muito contra o PC, mas na verdade fez um acordo com o Cunhal na véspera do 25 de Novembro. Foram precisos comportamentos desse género para que aquilo triunfasse. Milhões de pessoas estavam disponíveis para mudar o país. E até que chegamos a isto. 'A Europa é nossa' e como vê 'o nosso' ficou nisto.

 

Recebeu as perguntas três anos após ter saído da prisão. Esse período representou uma mudança na sua vida? Custa-me muito dizer isto, porque tenho medo de não ser compreendido, mas precisava de ser preso. Não sofri muito com a minha prisão. Salvo aquilo que é do relacionamento com a minha família, com os meus filhos e com a minha mulher. Tinha passado muitos anos na clandestinidade. Depois seguiu-se aquela loucura do 25 de Abril até ao 25 de Novembro. Depois outra vez a loucura do 25 de Novembro, para tentar recompor as coisas sob o ponto de vista político. Sem repetir esquemas. Foi um esforço muito grande. E quando fui preso estava profundamente esgotado. Esgotado no sentido de um limão tão espremido que já não tem mais nada para dar. Eu tinha essa sensação. A prisão permitiu-me recompor-me, comigo próprio. E por outro lado houve toda uma série de fenómenos que se estavam a passar ao nível do mundo, que eu não tinha tido tempo para reflectir. Não é por acaso que eu saio da cadeia ecologista, porque me permitiu perceber que toda a esquerda não tinha programa.

 

Como encara o país 40 anos depois do 25 de abril? Acontece-me muitas vezes na rua, pessoas reconhecerem-me e solicitarem-me comentários sobre a situação. Dizem-me: 'É pá, agora é que era preciso as bombas e tal'. Eu digo sempre que não se trata disso, as bombas não fazem milagres. Ou nós temos uma plataforma... Não há um programa de poder porque a esquerda está muito fraccionada e tem concepções antigas. Por outro lado, a União Soviética era, na cabeça dos capitalistas, o perigo daquilo abrir caminho à revolução. Os capitalistas fizeram sempre dos socialistas, desde o século XIX até ao século XX, a barreira de onde se defendiam da revolução. Faziam concessões aos partidos socialistas ou sociais-democratas no sentido de impedir que o processo degenerasse num processo revolucionário. O que acontece agora é que deixaram de ter essa função e eles acham que esses partidos são excrescências.

 

Em que circunstâncias acha legítimo passar-se da resistência pacífica para a luta armada? Em condições de falta de liberdade, de sub-exploração, em que deixa de haver respeito pelo mínimo comportamento social e político, acho perfeitamente legítimo. Nós fizemos acção armada antes do 25 de Abril porque havia uma emergência. Ao contrário de outros movimentos armados que houve na Europa, fomos um caso de sucesso. Porque colocámos em primeiro lugar aquilo que fazia sofrer mais o país, que era a guerra colonial, os milhares de desertores e refractários e o desfasamento do país. Por outro lado, defendíamos que não se defendia matar, porque matar é irreversível.

 

E em relação à atual situação?Neste momento estamos longe de ser necessário fazer ação armada. Embora eu perceba as pessoas quando sentem revolta pelo comportamento destes tipos. Mas é um comportamento de alguém que está encurralado. Não acredito que eles tenham coragem de dar um passo mais à frente e aplicar esquemas neoliberais, como os que foram aplicados no Chile de Pinochet. Tenho muitas dúvidas que se consiga, com o grau de liberdade que temos hoje, mesmo quando há um certo apodrecimento dos meios de comunicação social. É natural que os pobres e os que têm fome não durmam muito sossegados, mas não me parece que eles também estejam a dormir já com muito sossego. E quando se tem manifestações como por exemplo a do 15 de Setembro... Agora houve uma certa descompressão com a emigração, sobretudo dos jovens. Mas começam a criar-se condições para haver processos sociais muitíssimos violentos. E enquanto houver essa capacidade o lugar para as bombas não existe. Depois, logo se vê.

 

Carlos Antunes e o realizador de "Outra Forma de Luta" João Pinto Nogueira

Carlos Antunes e o realizador de "Outra Forma de Luta" João Pinto Nogueira

"OUTRA FORMA DE LUTA" SURGE em sequência do filme sobre a vida e obra de Nuno Bragança que João Pinto Nogueira levou a cabo anteriormente. Foi quando se encontrava a recolher depoimentos para "U Omãi qe Dava Pulus", que o realizador soube das perguntas deixadas pelo escritor a Carlos Antunes.

A obra de Nuno Bragança é essencialmente auto-biográfica e em ambos os filmes Pinto Nogueira optou conjugar o registo documental com a teatralização de cenas relatadas nos seus romances. No primeiro caso dando destaque a excertos de "A Noite e o Riso", neste caso com "Square Tolstoi".

"Outra Forma de Luta" é desenvolvido a partir da cumplicidade entre Bragança e Antunes, mostrando como o percurso político se cruza com uma esfera mais pessoal. As perguntas foram deixadas três anos depois de Antunes ter saído da prisão, altura em que já tinha deixado para trás a sua participação mais intensa na vida política. Resistentes, que optaram pela luta armada no final do regime do Estado Novo, ambos viriam a ter dificuldade em enquadrar-se no pós 25 de Novembro.

Construído em torno das respostas dadas por Carlos Antunes, o filme foca episódios como a sua rutura com o PCP e o seu apoio e posterior afastamento em relação a Otelo Saraiva de Carvalho no pós 25 de Abril, ficando centrado sobretudo na sua perspectiva e de algumas pessoas próximas. A começar por Isabel do Carmo, que no filme recorda como foi a afinidade política que a aproximou de Antunes (numa altura em que Antunes estava a afastar-se do PCP), iniciando um relacionamento que acabaria por dar lugar à relação matrimonial entre ambos.

Aos 73 anos, Carlos Antunes recordou o seu percurso pessoal e político

Aos 73 anos, Carlos Antunes recordou o seu percurso pessoal e político

CARLOS ANTUNES foi, conjuntamente com Isabel do Carmo, um dos mentores da Brigadas Revolucionárias, o grupo que entre 1971 e 1974 levou a cabo ações de luta armada contra o regime do Estado Novo, com especial enfase na contestação à guerra colonial.

Nasceu em 1940 na aldeia de São Pedro, na Serra da Cabreira, no distrito de Braga. No filme refere que apesar do meio católico e conservador de onde é oriundo, as posições anti-clericais e anti-fascistas do seu pai o marcaram ideologicamente.

Também marcante foi ter ido viver sozinho para Braga, com apenas 10 anos, a fim de prosseguir os estudos. Aos 15 anos iniciou o seu percurso político com a adesão ao Partido Comunista Português no Porto. Três anos mais tarde ficaria responsável pela organização do partido na região do Minho. Logo no ano seguinte, em Lisboa, passaria à clandestinidade tornando-se funcionário do Secretariado do Comité Central do Partido.

Em 1963 muda-se para a Roménia onde será membro da direcção da Rádio Portugal Livre até 1966, ano em passará a viver em Paris onde ficará responsável pela organização do PCP no estrangeiro.

O afastamento para com Álvaro Cunhal e com o partido ocorre no final dessa década, já após Marcelo Caetano ter substituído Salazar. No início da década de 1970 regressa clandestino a Portugal para coordenar a ação das Brigadas Revolucionárias. Paralelamente ao grupo armado, participou em 1973 na criação do Partido Revolucionário do Proletariado (PRP), que seria legalizado após o 25 de Abril.

A sua intensa participação política manter-se-ia ao longo dessa década. Começou por apoiar Otelo Saraiva de Carvalho, de quem iria depois se distanciar.

Entre 1978 e 1982 esteve preso preventivamente conjuntamente com Isabel do Carmo e outros militantes do PRP, sob a acusação de autoria de várias ações armadas, entre as quais assaltos a bancos, e ações revolucionárias. Ao longo do período de detenção chegou a recorrer à greve de fome para chamar as atenções para os seus casos. Acabariam por ser julgados e absolvidos.

Nuno Bragança faleceu em 1985

Nuno Bragança faleceu em 1985

NUNO BRAGANÇA Os romances que deixou espelham uma vida marcada, tanto a nível pessoal e político, por uma posição de gradual desligamento, ruptura e afronta para com os meios conservadores de onde era oriundo.

Nascido em 1929 em Lisboa, no seio de uma família da alta aristocracia, começou por estudar agronomia, mas acabaria por se formar em direito em 1957. Foi praticante de boxe e de caça submarina, tendo sido co-fundador do Centro Português de Atividades Subaquáticas.

Em 1955 casou-se com a sua prima Maria Leonor Fonseca de Matos e Goes Caupers e integrou a equipa do jornal Encontro, da Juventude Universitária Católica, onde publicou os seus primeiros textos literários.

Aproximando-se dos católicos progressistas seria co-fundador em 1963 da revista "O Tempo e o Modo", conjuntamente com João Bénard da Costa, António Alçada Baptista e Pedro Tamen.

No final dessa década, radicalizaria a sua posição política, com o seu envolvimento na criação do grupo de luta armada Brigadas Revolucionárias.

Falecido a 7 de fevereiro de 1985 em Lisboa, deixou cinco livros (o último dos quais seria publicado a título póstumo) que seriam reunidos em 2009 num único volume que inclui a peça radiofónica "A Morte da Perdiz", que criou com Pedro Tamen, Nuno Cardoso Peres e Maria Leonor.

A obra de Bragança abarca também diversas colaborações para cinema, entre as quais o argumento do filme de Paulo Rocha "Os Verdes Anos" e o documentário que levou a cabo com Gérard Castello Lopes, Fernando Lopes e Augusto Cabrita "Nacionalidade Português".