Cultura

O mundo de Hervé di Rosa em exposição no MAAT: a arte modesta na Feira Popular?

“Ah! Ah! Ah!”: a estrela ou o polvo verde pairando sobre o ventre da baleia
“Ah! Ah! Ah!”: a estrela ou o polvo verde pairando sobre o ventre da baleia

Há mais mundos nas artes para lá daqueles que conhecemos e temos por certos. A exposição “Archipelago – Obras do MIAM, Musée International des Arts Modestes” é uma feira popular estática e sem vendas, que diverte e confunde. No Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa, até 9 de setembro

Ao mergulhar no ventre da baleia que é o interior do MAAT, ali na ribeira do Tejo, ao lado da antiga central que já iluminou Lisboa, não vi o Pinocchio, muito embora admita que ele também possa lá estar, entre centenas e centenas de bonecos, imagens, cartazes, pirâmides, caravanas, folhetos, sob um sol verde ou um monstro benfazejo, sorridente e insuflável, “Ah! Ah! Ah!” de seu nome, estendendo os seus tentáculos sobre toda essa multidão que neste momento atropela a minha memória visual. Essa é a multidão das Artes Modestas, a partir do conceito inventado e proposto sob a forma de museu desde 2000 por um artista, Hervé Di Rosa (n. Sète, França, 1957), agora com uma amostra vasta e representativa em Lisboa.

De súbito, uma frase surgiu-me na memória — “Viva a Feira Popular!” —, bem de acordo com parte do ambiente, tão diversificado e contraditório, dessa exposição “modesta” e, por momentos, tão próxima quer da Arte Comercial quer da Arte Pública que povoam as minhas longínquas memórias da Feira Popular: alguns letreiros, os percursos entre o sonho e o susto da selva africana e do comboio-fantasma ou — memória mais recente — da evocação depreciativa do pintor Júlio (Reis Pereira) como o Júlio das Farturas, o que a seu tempo foi dito. Tal memória, aliás, não remonta à infância mas a um texto, longínquo no tempo, que escrevi para “O Jornal” a 2 de fevereiro de 1976, a propósito de uma notícia, ou de um boato, que circulou no mundo dos museus sobre a possibilidade de criação de um ninho de museus nos terrenos da Feira Popular de Lisboa, a qual, suponho, teria de emigrar para outras paragens. O texto em questão punha uma hipótese bem diferente: a manutenção da feira com a inclusão no mesmo espaço de alguns museus, sobretudo museus de arte entendidos como lugares de prazer, i.e., de gosto e de gozo, justamente aqueles que pudessem dar pelo nome de Arte Contemporânea, coisa inexistente ao tempo, ou melhor ainda de Museu Oficina de Arte Contemporânea, como lugar de encontro possível entre os artistas ou os operadores estéticos, como nesse tempo apregoava o Zé Ernesto (de Sousa) e os públicos.

Muitos anos se passaram, muita coisa melhorou e outra tanta cresceu, incluindo a inquietação pelo futuro dos museus; a feira, infelizmente, passou do gosto e do gozo para o marketing acéfalo do imersivo, para o culto do número de visitantes em detrimento do esclarecimento dos públicos — há muita coisa feita e bem feita, mas permanece a noção, o sentimento ou a desconfiança de que está tudo por fazer.

É também de viver o tudo que pretende tratar Di Rosa no seu “arquipélago”, com a presença de uns mapas, ao modo de planisférios ou mapas-múndi de sua invenção, onde surgem diversos territórios para outros tantos tipos de arte, esperados uns, inesperados outros. Nos esperados podemos encontrar, como era obrigatório, a Arte Modesta juntamente com a Arte Popular, a Arte Amadora, as Artes do Corpo e a Arte Ingénua ou Naïf; já a Arte Comercial pode estar numa espécie de fronteira antes de repararmos numa outra série de artes: Tradicional, Académica, Religiosa, Decorativa; até chegarmos à Moderna e à Contemporânea, navegando num oceano das Artes Modestas que, afinal, acaba por englobar tudo ou, pelo menos, manifesta essa intenção.

O bruto, o ingénuo e o singular

Se os mapas revelam um propósito, funcionando através dos manifestos gráficos que são, já as peças, organizadas em conjuntos, supõem um determinado trabalho de recolha e a intenção clara de demonstrar que há muito mais mundos na produção artística do que aqueles a que estamos acostumados, confrontando-nos não com designações genéricas mas com o concreto de cada obra ou conjunto delas.

Além das peças de parede, pinturas ou cartazes, dos manequins, de uma caravana e de um jipe todo o terreno decorados, o maior número de obras apresenta-se num conjunto de pirâmides, cada uma com um tema, que pode ser familiar e privado, tal como “Os Pássaros do Meu Pai”, um grupo de chamarizes da autoria de Marius Di Rosa, pai de Hervé, ou abarcar mundos diversos, complexos e contraditórios, como a pirâmide dos “Outsiders”, que mistura e confunde perigosamente o bruto, o ingénuo e o singular, num registo de peças onde sobressai o particular e um tipo de comunicação fruto do isolamento. No mesmo caso está “Fuga”, uma pirâmide de peças realizadas por presos, por vezes escravos, de épocas e geografias bem diferentes. Mais coerente é a pirâmide dedicada à literatura de cordel brasileira, um conjunto de folhetos, por vezes com xilogravuras na capa, onde Camões convive com S. Teresa e esta com Maria Bonita, a famosa cangaceira.

Duas grandes mensagens nos traz esta Feira Popular estática e sem vendas, além de divertir e... confundir: a primeira é “há mais mundos” nas artes para lá daqueles que conhecemos e temos por certos; a segunda afirma que não há qualquer hierarquia na proposta deste universo modesto. Por isso mesmo não falei em Kitsch, termo que Salette Tavares traduziu, e bem, por “pires”, mas que ele lá está, lá está, tal e qual como na Feira Popular também abunda.

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