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Cartas ao futuro ou o elogio da lentidão e da ousadia por Luis Miguel Cintra

Cartas ao futuro ou o elogio da lentidão e da ousadia por Luis Miguel Cintra
gonçalo ROSA DA SILVA

Num tom mais pessoal e afectivo, e até espiritual, o encenador, ator e dramaturgo Luis Miguel Cintra dá-nos conta do que fez e também do que não fez. O lançamento do livro será realizado esta quarta-feira no Teatro National São João, no Porto, pelas 18 horas. A apresentação já não será feita pelo Cardeal José Tolentino Mendonça, conforme foi inicialmente anunciado, já que este cancelou por motivos de doença

O “Pequeno Livro Arquivo - Pensamentos, palavras, actos e omissões” (Edições 70), que Luis Miguel Cintra lança esta quarta-feira no Porto - cidade para a qual se mudou desde que deixou de ser um “fazedor” de teatro -, poderia ser um canto aos feitos realizados pelo grande criador artístico que o actor, encenador, dramaturgo, produtor é.

No entanto, e num movimento oposto, é a mágoa de um homem que conheceu o preço envenenado da homenagem em vida que se anuncia nas primeiras das 643 páginas deste livro muito mais pessoal, inquieto e reflexivo que os dois livros catálogo do Teatro da Cornucópia, companhia de que Luis Miguel Cintra foi fundador e director até a extinção, e no qual estão também publicados textos do encenador.

“Cheguei a Velho” chama-se esse primeiro texto de formato quase epistolar, escrito em 2014. Nele é confesso o desgosto que é sentir que quem lhe promete fundos também lhe retira o tapete: “Amargurado com a finta que me fizeram com o prematuro triunfo de ver a sala do mais bonito teatro de Lisboa (leia-se Teatro Municipal São Luiz) ficar com o meu nome, mas sem rancor e muito triste, com o trambolhão do fim da Cornucópia, percebi que estava a correr em círculo fechado, como os atletas nos estádios, e obriguei-me ainda por amor à vida a guardar suficiente sentido humor para ter querido começar com estas frases esta espécie de arquivo de coisas que fui escrevendo: Sou uma velha espanhola, que divide o tempo entre a Praça de Touros e a Catedral. Gostava de ser tudo, Carmen, Escamillo e Don José.”

O tom galhofeiro de quem perdeu o que lhe é essencial, e nada mais lhe resta a não ser rir-se da sua desgraça, é dado ainda pela primeira fotografia do livro. Luis Miguel Cintra aparece com um gorro, com o símbolo Lacoste, e uma mão no ar de quem se escuda dos holofotes. Exibe uma barba de três dias e dá um ar de jovem rapper ou de alguém que, por ter encontrado no teatro uma forma “tão linda” de brincar com os outros, se recusa a envelhecer, a parar e a arrumar-se.

Depois de todas as cartas de amor que escreve a Cristina Reis, cúmplice, a cenógrafa com quem sonhou o teatro desde 1973, e da tristeza confessa face “a uma sociedade mesquinha”, o livro dá entrada na fase “Depois da Cornucópia/Quatro Espectáculos Sem Cristina”.

Se o luto tem fases, o fim da Cornucópia inicia claramente o da negação, a vontade de continuar a brincar fora de casa, sem teto, nos espaços que lhe vão sendo oferecidos, num ato de amor e desespero que partilha com a geração de atores que mais trabalhou com ele: “(...) Como acontece nas praças com o touro, que raramente cai à estocada perfeita que o bom toureiro lhe enfia pelo cachaço abaixo, precisando de mais uma ou duas curtas punhaladas para cair com o todo o seu peso às vezes até de joelho diante do toureiro, assim aconteceu ao teatro que se fazia no Teatro do Bairro Alto com a Cornucópia: houve ainda, antes de cair no chão, vários espectáculos de que me orgulho”.

O tom epistolar que perpassa o livro fala-nos de amores, “grandes amizades, poucas zangas” E é dessas coisas passadas, e dir-se-ia “pesadas”, que este livro dá conta, e de que ele se faz. Ele próprio um calhamaço, grande também nos afetos, nas inquietações. Registo de uma construção coletiva de um teatro que marca a história desta arte em Portugal, no período relativo ao final do século XX e ao princípio do XXI, mas também de uma indagação espiritual e profunda do seu autor, como acontece um pouco mais para o fim do livro, quando se reafirma de modo claro que o ato criador, no modo como o Cintra o entende, é uma forma de olhar para o céu, uma forma de entender a morte, que não se ajusta às necessidades materialista dos tempos.

Quase a terminar aparece Sophia de Mello Breyner, e logo o elogio da lentidão, da persistência e da ousadia, e não podia ser de outra maneira, porque é com a memória desse mundo que este livro dialoga, e é para o futuro que tenta projetar a história dessa época, em que a vida acontecia nesse “hangar” ou “atelier” que era o Teatro do Bairro Alto/Teatro da Cornucópia, sem algoritmos, sem marketings, sem fast qualquer coisa.

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