Shlomo Sand é um historiador polémico. Sabe que o é. Quando o seu livro “The Invention of Jewish People” saiu em 2008, em hebraico (e um ano depois em inglês), foi criticado com dureza pelos seus pares, por levantar dúvidas sobre a origem étnica e geográfica comum do povo judeu. Sand atrevia-se, pontuou na altura o “The Guardian”, a “abalar a fé histórica na ligação entre o judaísmo e Israel”.
Seguiram-se outros volumes que aprofundaram e ampliaram a temática do anterior: “Como a Terra de Israel foi inventada” e “Como uma Raça foi Imaginada” — por cá recentemente lançados pela (Un)common ground —, ou “How I Stopped Being a Jew”, em que ele distingue a identidade judaica da israelita.
Filho de judeus polacos que foram levados para leste e assim sobreviveram ao Holocausto, Shlomo Sand nasceu em Linz, em 1946, num campo de refugiados austríaco. Ao emigrar para Israel, a família — que tinha rejeitado a compensação dada pela Alemanha às vítimas do nazismo — foi viver para um kibutz. Um percurso longe de linear, que inclui a expulsão do liceu e vários empregos distintos, acabou por conduzi-lo tardiamente à Universidade de Telavive e ao curso de História. Mudou-se então para Paris, onde se doutorou com uma tese sobre Georges Sorel na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Hoje vive entre Telavive, onde é professor emérito, e Nice.
A convite da Un)common ground, Shlomo Sand esteve em Lisboa em fevereiro, o que coincidiu com a saída em Portugal da sua “Breve História Mundial da Esquerda”, publicado pela editora Zigurate. Foi sobre esta obra, em que o autor disseca as origens da ideia de igualdade e a falência desta no mundo moderno — o que significa a falência da própria esquerda —, que Shlomo Sand conversou com o Expresso.
O livro começa analisando “a igualdade como mito moderno”. Porque em que sentido fala de ‘mito’ da igualdade?
Quando era jovem, fiz parte de um movimento comunista, tal como o meu pai. E sempre ouvi falar do marxismo como uma ideologia ‘científica’. Com o passar do tempo, comecei a estudar História e rapidamente percebi que não há qualquer ciência nas ciências sociais — essa denominação surge o século XX, no seio das universidades. Depois cheguei ao pensamento Georges Sorel. Fiz a tese de doutoramento sobre ele, que acabou por ser o meu primeiro livro. Sorel era um marxista crítico do marxismo, para quem os ideais políticos e sociais vêm sempre ‘agarrados’ ao mito da igualdade. Os conservadores têm o mito do passado — isso é o nacionalismo. Os judeus, o mito do exílio. Isto para dizer que o mito faz parte da construção das nações. Para construir a Europa, começa-se pelo mito da Europa. Trata-se de uma ideia de futuro na qual se acredita e pela qual se aceita sacrificar alguma coisa. A origem da ideia de socialismo é mítica e não científica, como sustentam os marxistas. Isso não é algo de negativo, porque não se pode lutar por alguma coisa coletivamente sem essa vertente mítica. Para nos lançarmos numa luta precisamos de acreditar nela. Neste sentido, o mito da esquerda começou a desvanecer-se.
Há uma frase de Bertrand Russell citada por si, que diz: “Um homem sem qualquer preconceito não pode escrever uma história interessante.” Pode explicá-la?
Bertrand Russell foi um dos filósofos mais escandalosamente honestos do século XX. Não se importava com o que as pessoas pudessem pensar sobre ele. Admitia que, no que toca à filosofia social e à análise histórica, não é possível ser-se neutral. Cada um tem as suas posições, e mesmo que se tenha uma mentalidade aberta a nossa posição moral orienta a nossa análise. Todos os historiadores que se dizem neutrais — e fomos educados por estes positivistas — na verdade não o são. Ser-se consciente dessa não-neutralidade na análise dos fenómenos sociais é bastante difícil, e daí Bertrand Russell ser tão relevante. Ele diz: sim, tentei ser correto na minha análise, mas continuo a saber que ela depende dos meus valores sociais e humanos.
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