O fundador do Novo Jornalismo foi um prolífico romancista, duas vezes Prémio Pulitzer, biógrafo, cineasta e ativista. Criou literatura de não-ficção e ficcionou a realidade. Foi prolífico e brutal, marcando para sempre as letras em língua inglesa
Em julho de 1963, o crítico literário Steven Marcus entrou em casa de Norman Mailer para o entrevistar para a “Paris Review”. O apartamento, situado em Brooklyn Heights, ostentava uma vista monumental sobre a baixa de Manhattan e a baía de Nova Iorque. Marcus reparou logo no tema marítimo da sala de estar, nos acessórios náuticos, e deixou nota da primeira impressão que teve de Mailer: quase um capitão a bordo de um navio, aos 40 anos, a quem peso a mais por ter há pouco deixado de fumar parecia emprestar-lhe um ar de “benignidade”. Antes de começarem a conversa, o escritor pediu um minuto para mudar de roupa, e apareceu com um macacão que era, segundo disse, o seu “fato de escritor”. De resto, preparou o almoço com modos nobres de “príncipe secular”.
Tratando-se de Norman Mailer, a cena não é difícil de imaginar. Nessa altura, tinham já passado 15 anos desde que publicara “Os Nus e os Mortos” (D. Quixote), o romance que o catapultou como autor, segundo alguns críticos o melhor romance de guerra alguma vez escrito. Inspirado na sua própria experiência como cozinheiro das tropas que ocuparam o Japão após a rendição do país, foi escrito no isolamento de uma cabana no Massachussets e vendeu 200 mil exemplares em três meses e um milhão no primeiro ano, continuando até hoje a ser editado. O livro baseia-se nas 400 cartas diárias que Mailer trocou com a então mulher, Bea Silverman, e nas impressões do que ele viria a considerar “a pior experiência da minha vida, e também a mais importante”.
Nascido há exatamente cem anos, no seio de uma típica família judia de New Jersey — o seu nome era Nachem —, de pai contabilista e mãe dona de casa, e criado em Brooklyn, graduou-se em engenharia em Harvard ao mesmo tempo que frequentava cursos de escrita. Aos 18 anos publicou a primeira história, e invocou estar a trabalhar num grande projeto literário para adiar a entrada no serviço militar. Claro que, com os Estados Unidos a entrar na II Guerra Mundial, isso lhe foi negado. Acabou enviado para as Filipinas, primeiro enquanto datilógrafo, depois como técnico de cabos elétricos. Em 1945, foi mandando para Japão.
A literatura como arma
O seu regresso da guerra representou o início de um percurso literário e artístico ainda hoje sem paralelo na cultura norte-americana. Após o boom da primeira obra surgiram outras, de menor magnitude, como “Barbary Shore” e “O Parque dos Veados” (Livros do Brasil). Esta última foi rejeitada por sete editoras pelo seu conteúdo sexual até a Putnam aceitar publicá-la. A década de 1950 trouxe-lhe outras vias criativas, como a escrita de guiões cinematográficos e o jornalismo, que começou a exercer enquanto ensaísta da contracultura, fundando, em 1955, com Dan Wolf, Ed Fancher e John Wilcock, o jornal “The Village Voice”. Um texto seu para a “Esquire”, “Superman comes to the Supermarket” — o relato da ascensão de John F. Kennedy durante a convenção do Partido Democrata — trouxe um novo género jornalístico, o Novo Jornalismo, que aproveita as técnicas literárias para contar histórias reais, nomeadamente através do recurso à terceira pessoa do singular para se referir a si mesmo. Entre os seus melhores textos neste âmbito estão “Miami and the Siege of Chicago”, “Of a Fire of the Moon” (sobre a missão na lua da Apolo 11), “The Prisoner of Sex” e “The Fight” (“O Combate”, D, Quixote).
Mas também “Os Exércitos da Noite” (D. Quixote), o livro com o qual, em 1968, ganhou um Pulitzer de não-ficção e um National Book Award, começou por ser um ensaio sobre a grande manifestação contra a guerra do Vietnam que teve lugar um ano antes em Washington, em frente ao Pentágono, na qual Mailer participou. A pedido da revista “Harper”, ele produziu um texto que foi considerado a mais longa peça de não-ficção alguma vez publicada numa revista — com 90 mil palavras, mais tarde transformadas em livro.
Antes disso, Mailer escrevera “Um Sonho Americano” (Livros do Brasil), que também teve uma génese particular: foi publicado na “Esquire”, em capítulos, ao longo de oito meses, lembrando uma prática muito utilizada por Charles Dickens. O romance narra 32 horas da vida do protagonista, Stephen Rojack, heroi de guerra, deputado, professor universitário que encarna o sonho americano e sobre o qual Mailer disse: “Rojack é consideravelmente diferente de mim ele é mais elegante, mais espirituoso, mais heróico e, ao mesmo tempo, mais corrupto do que eu. Eu queria criar um homem que fosse maior do que eu, mas um pouco menos bem sucedido. Assim, idealmente, a sua densidade psíquica, se me é permitido usar uma frase privada, seria igual à minha, e assim eu poderia escrever confortavelmente dentro da sua cabeça.”
A sua quinta obra, “Why We Are in Vietnam?”, de 1967, foi elogiada como o seu “melhor trabalho” pela escritora Joyce Carol Oates. No entanto, viriam outros, como “O Canto do Carrasco” — por cá editado em dois volumes, nos anos 1980, pela Europa América —, que lhe deu o segundo Pulitzer; “O Fantasma de Harlot” (ASA), o seu romance mais longo, com mais de 1300 páginas; ou “O Fantasma de Hitler” (D. Quixote), o último que escreveu, sobre a infância do ditador.
Leone sim, Godard não
Como homem inquieto que era, Norman Mailer abordou também o género biográfico, debruçando-se sobre a vida de Marilyn Monroe, Pablo Picasso, Lee Harvey Oswald, Muhammad Ali e Gary Gilmore. O seu próprio biógrafo, J. Michael Lennon, comentou o grande interesse do escritor em “explorar as profundidades psíquicas” destas personalidades, por sinal muito diferentes entre si. Dedicou-se também ao cinema, como realizador e até como ator — veja-se “Ragtime”, a versão cinematográfica do romance homónimo de E.L. Doctorow, dirigida por Milos Forman. Nos anos 1970, colaborou com o cineasta Sergio Leone. Esteve quase por trabalhar com Jean-Luc Godard na versão para cinema do “Rei Lear”, de Shakespeare, não fosse o desentendimento entre ambos dias antes de iniciar as filmagens.
Em 1969, a sua tentativa de entrar na política, como candidato do Partido Democrata para mayor de Nova Iorque, falhou. Como ativista contra a guerra do Vietnam, além de ter sido preso, assinou com outros escritores e editores um protesto a favor de não pagar impostos. Em 2003, num discurso proferido em São Francisco pouco antes da Guerra do Iraque, comentou: “O fascismo é mais um estado natural do que a democracia. Assumir alegremente que podemos exportar democracia para qualquer país pode servir, paradoxalmente, para encorajar mais fascismo no país e no estrangeiro. A democracia é um estado de graça só alcançado por países que têm uma série de indivíduos não só prontos a gozar de liberdade, mas também a submeter-se ao trabalho pesado de a manter.”
Casou-se seis vezes, teve nove filhos. Esfaqueou a segunda mulher, Adele Morales, alegadamente (como depois explicou) “para a aliviar do cancro”. Teve mulheres como Susan Sontag e Germaine Greer a acusá-lo de misoginia após a publicação de um dos seus ensaios, “The Prisioner of Sex”, no qual apelidou a atriz Kate Millett de “vaca entediada”. Em 2007, quando morreu, o obituário do jornal “The Independent” apontou o seu “machismo implacável”, notando jocosamente como tal atitude “parecia deslocada num homem que era, na realidade, muito pequeno”.
No dia 10 de novembro daquele ano, um mês após uma cirurgia, morreu de insuficiência real aguda. E ninguém se admirou quando, em 2019, Susan Mailer, a sua filha mais velha, publicou ”In Another Place: With and Without My Father Norman Mailer”, as memórias da relação com o pai, descrita como “intensa e complexa”. E ele era (no mínimo) assim.
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