A reinvenção do Batalha
Tal como num filme, o cenário visível esconde uns bastidores carregados de tecnologia inovadora posta ao serviço de uma programação arrojada e diferente do habitual
Tal como num filme, o cenário visível esconde uns bastidores carregados de tecnologia inovadora posta ao serviço de uma programação arrojada e diferente do habitual
A verdade do Batalha, no Porto, é, afinal, uma grande mentira que terá passado despercebida à grande maioria de quantos assistiram na tarde desta sexta-feira à reabertura daquele espaço imenso abandonado a partir de 2010 e agora devolvido à cidade. Tal como numa produção cinematográfica, há ali um grande jogo de ilusões. A sala parece a mesma, mas como dizia ao Expresso o arquiteto Sérgio Fernandez, responsável pelo restauro com Alexandre Alves Costa, “debaixo da capa, debaixo da superfície visível, há todo um novo mundo tecnológico inimaginável quando a sala foi fechada”.
Há uma reinvenção do Batalha. Há uma vida nova, materializada, não apenas num desafiante conceito de programação. A estrutura física, sendo a mesma, é claramente outra. Desde logo pelos frescos. Difíceis de perceber em toda a sua dimensão no meio daquele mar de gente. Ficam os detalhes. Como o ar emocionado de Laura Andrade, a filha do arquiteto Artur Andrade, responsável pelo projeto original e pelo convite ao então jovem estudante Júlio Pomar para pintar uns frescos na nova sala em construção.
Recuperados segundo técnicas raramente utilizadas, podem agora ver-se em todo o seu esplendor, no que constitui, décadas passadas, uma derrota dos censores responsáveis pela decisão de ordenar a sua ocultação no final dos anos de 1940.
Enfim, os frescos. Em boa verdade, praticamente nenhum dos possíveis sobreviventes das célebres sessões do cineclube do Porto, aos domingos de manhã no cinema Batalha, terá qualquer espécie de memória de um trabalho artístico nunca visto, e, no entanto, tornado mítico. Agora, quando se menciona o Batalha, já é impossível pensá-lo sem aquelas figuras pelos vistos subversivas, e, no entanto, apenas representativas de vontades e desejos de festa do povo amante dos bailes de S. João. Com as guitarras, os acordeões, as formas voluptuosas de homens e mulheres. O balão prestes a ser largado. A ideia de comunhão. A arrojada ideia de partilha.
Como dizia Rui Moreira, “o Batalha foi sempre mais do que um cinema”. E agora será mais do que apenas um cinema, na sequência do contrato de arrendamento por 25 anos celebrado entre a autarquia e a família dos proprietários, no valor de 10 mil euros mensais.
Pedro Adão e Silva, ministro da Cultura, espelhava no rosto e expressava em palavras a felicidade de pela primeira vez presenciar aqueles frescos. Felicidade, também, dizia, “por se estar a recuperar a ideia de fruição cultural que acontece no espaço público”. E com o regresso da ideia de “que o cinema é para ser visto no cinema”.
Nessa vontade e disponibilidade para dar a ver um outro cinema, e com outras condições, é inevitável dar realce às especiais condições da Sala 2. De alguma forma substitui a icónica “Sala Bebé”, um pequeno espaço no piso inferior à sala principal onde eram projetados filmes mais destinados a cinéfilos. Logo de início foi decido eliminá-la devido às suas muitas deficiências técnicas e por não cumprir os mínimos ao nível tecnológico. O novo estúdio está no último piso, onde antes existia o último balcão do Batalha. Ver um filme ali era quase uma aventura vertiginosa.
A construção da sala constituiu um grande desafio para os arquitectos, num trabalho de grande complexidade, com muitos estudos acústicos e utilização das mais sofisticadas tecnologias. Em resultado desse processo, diz Guilherme Blanc, diretor artístico do Batalha Centro de Cinema (BCC), “temos um novo estúdio com 120 lugares, com uma escala pouco habitual, de grande horizontalidade, do ponto de vista de visão”. Quem se senta na sala percebe de imediato a eminência de uma nova experiência no ato de ver cinema. Devido à localização e dimensão do ecrã numa sala de tão reduzidas dimensões, há como que uma imersão do espetador no filme projetado, ainda por cima com uma excelente qualidade sonora. “É frontal, o que não é muito comum, e tem uma escala muito parecida com o que se vê em museus quando os filmes estão instalados. Dá aquela escala imersiva do museu, mas em sala”, explica Guilherme
Hoje, a partir das 18h30 já começaram a ser projetados os primeiros filmes na Sala 1: “The New Sun”, de Agnieska Polska, e “The Day the Earth Stood Still”, de Robert Wise, com repetição às 21h30. Para a Sala 2 estavam reservados, com exibições às 23h30 e 2h00: “What the Sun has seen” e “The new sun”, de Agnieska Polska.
São sinais indicadores da programação. Há várias ideias chave que se cruzam. Por um lado, o BBC pretende alimentar a ideia de estar próximo do cinema clássico, de arquivo, embora, ao fazê-lo, haja sempre a tentativa de propor novas leituras.
Como explica Guilherme Blanc, “em vez de fazer mais uma retrospetiva de Ingmar Bergman, tem muito mais interesse fazer uma retrospetiva dedicada a Mai Zetterling (1925-1994), uma actriz muito importante para o Bergman, uma mulher esquecida na história do cinema, que por acaso até ganhou vários festivais e prémios importantíssimos e também foi realizadora”.
Por outro lado, haverá sempre uma preocupação de proximidade em relação ao cinema contemporâneo. É sabida a existência de uma enorme quantidade de filmes que nunca chegam a ser exibidos em Portugal, ou, se aparecem, é em fugidias presenças em alguns festivais e quase sempre em sessões únicas. Essas abordagens cinematográficas passam a ter lugar no Batalha, tal como ciclos temáticos, onde se cruzam filmes clássicos e contemporâneos.
Em simultâneo, está prometida uma cuidada atenção ao cinema português. E quem por estes dias entrar no Batalha poderá ter a surpresa de se confrontar com algo inesperado e pouco conhecido. Nos corredores pode ver-se uma exposição documental dedicada ao filme “A Confederação”, de Galvão Teles. É um filme incluído no programa de “Políticas Sci-fi”, que arranca este fim de semana e constitui uma das raras fitas de ficção científica realizadas em Portugal. Para a concretização da mostra foi feita uma grande investigação ao nível da produção e da criação. Trata-se de um filme pensado e escrito antes do 25 de Abril e produzido durante o chamado PREC-Processo Revolucionário em Curso. Um dos factos mais intrigantes revelados pela exposição é constatar que “A Confederação” teve como ponto de partida e inspiração o livro de poesia “A Invenção do Amor”, de Daniel Filipe. “É um filme imbuído daquele espírito das distopias militares em que se tenta fazer prevalecer o amor, para que o amor vença, como em ‘Alphaville’, ou ‘Farenheit’. Só que à portuguesa”, explica Guilherme Blanc. Vai ser apresentado no domingo com a presença de Galvão Teles, Lopes Sabino e Arnaldo Saraiva, que é um dos personagens do filme, a moderar a conversa.
Um dos grandes momentos da programação para os próximos tempos é o ciclo dedicado à realizadora e escritora francesa Claire Denis, intitulado “Todo o Corpo”. Serão projetados 17 filmes e entre eles está “Beau Travail” (30 de dezembro e 8 de janeiro), de 1999. A Revista “Sight and Sounds” acaba de o colocar na lista restrita dos melhores filmes de todos os tempos.
A programação de toda a atividade de uma estrutura que não se vai limitar ao cinema pode ser escalpelizada aqui.
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