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Greta, a livraria que só vende livros de mulheres: “Maioria das grandes editoras é liderada por homens que gostam de trabalhar com homens”

Lorena Travassos, brasileira de 42 anos, vive há oito em Portugal, onde faz investigação em ciências da comunicação e dá aulas na Universidade Nova de Lisboa.
Lorena Travassos, brasileira de 42 anos, vive há oito em Portugal, onde faz investigação em ciências da comunicação e dá aulas na Universidade Nova de Lisboa.
TIAGO MIRANDA

Das mãos de Lorena Travassos nasceu um projeto feminista dedicado a material escrito por mulheres para que o público coloque mais os óculos delas e sinta como veem o mundo. Em breve ganhará morada física e fará surgir uma editora

Lorena Travassos sempre leu muito. Desde cedo impôs-se a tarefa de escolher ler mais mulheres, por saber estarem em minoria entre quem escreve, entre quem publica e quem decide o que publicar. Não que a fatalidade lhe seja estranha. Afinal, nasceu fêmea. Sabe que a igualdade de circunstâncias entre géneros quase só existe em número de exemplares nascidos.

Uma fresta para a mulher. Esse ser versado na Bíblia como tendo sido feito a partir da costela do homem, difere dele em quase tudo. São de outra ótica os dias, o comprimentos das horas de que são feitos os dias, e até o dos sonhos. São outros os óculos que marcam o ângulo do olhar, fatalmente colocado na escrita.

Mas sem ter a consciência absoluta disso, a brasileira viu a vida curvar-se para o projeto de uma vida. Entre a formação em jornalismo, que ainda completa, com um doutoramento em Ciências da Comunicação, na Universidade Nova de Lisboa, e a experiência de ter trabalhado numa editora, em São Paulo, foi em Barcelona, durante a pandemia, que lhe amadureceu um sonho antigo: o de ter uma livraria.

“Fui a todas as livrarias feministas da cidade e adorei-as. Fiquei a pensar na pena de não haver uma livraria destas em Portugal”, lembra. Surgia aí um princípio de juntar o sonho com a luta feminista, que a pandemia dilatou.

É que, durante esse tempo, para além de mais livros, chegaram ao confinamento de Lorena “notícias de que a incidência da violência doméstica tinha aumentado”, de que a produção científica “reduziu bastante entre as mulheres com filhos”. E ela, investigadora sem filhos, sabia porquê. “Tinham de cuidar da casa e não conseguiam trabalhar como os homens, cuja produção se manteve”.

Abriu uma campanha de crowdfunding: 1500 euros eram precisos para pagar a quem lhe criasse um site. Venceu um concurso com o projeto da “Greta”, que lhe garantiu mais algum dinheiro. E lançou, em 2022, a página online da primeira livraria portuguesa que só vende livros escritos por mulheres.

A Greta nasceu para propagandear literatura escrita por mulheres, algo que, na opinião de Lorena, não acontece suficientemente nas principais editoras. “Se eu for olhar para os catálogos das editoras, têm muitíssimo poucas mulheres em comparação com os homens. Em cada três páginas de livros, encontro três de mulheres. Penso que rondará os 30%, em média, nas grandes editoras portuguesas. Isto, sendo otimista. Nenhuma chega a 50%”, afirma a investigadora e professora da Universidade Nova de Lisboa.

O problema maior, diz-nos, “é que a maioria das editoras são lideradas por homens – e os homens preferem trabalhar com outros homens”.

A Greta, nome que escolheu por significar abertura, quer mesmo abrir as portas à escrita feminista no feminino, mas sem as fechar aos leitores homens. Nela são expostas obras de autoras cis ou trans, independentemente do género literário e com particular atenção a edições pequenas ou autopublicações.

Quer também funcionar como “uma curadoria”. Para além de expor livros em catálogo, conta com quatro possibilidades de planos anuais para sócios, que recebem livros em casa escolhidos pelos próprios ou podem deixar a cargo da curadora a escolha de obras “que tratam da questão contemporânea da mulher, do dia a dia, das relações, da família e da maternidade”, explica.

Em breve, e porque o sonho não se completou ainda, é preciso arranjar pouso físico para a Greta. Algures em Lisboa, a livraria ganhará morada. Em breve, talvez no próximo ano, a Greta será também uma editora que se lançará com “uma linha de livros sobre a maternidade”. Os planos estão com Lorena.

“A minha investigação, mesmo sendo sobre fotografia, sempre foi voltada para a questão de género. Sempre utilizei pensadoras feministas, sempre li muita produção de mulheres, sobretudo aquela que é voltada para o feminismo. Para mim é muito importante ler livros de mulheres negras, de mulheres trans, de mulheres gordas a falarem da gordofobia”, confessa ao Expresso.

Por tudo isto, Lorena partilha a vontade de ser mais um grão de areia para mudar a história, que até meados do século passado vedava a escrita a mulheres e obrigava-as a assinarem com nomes masculinos, e que hoje, premiada Annie Ernaux com o Nobel 2022 da Literatura, contabiliza apenas 17 mulheres entre os 118 galardoados com este prémio.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: jascensao@expresso.impresa.pt

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