Foi com enorme perplexidade que, tão pouco tempo após a morte da minha mãe, tomei conhecimento da publicação de dois artigos no Expresso que parecem ter a intenção de pôr em causa o museu que lhe é dedicado, a Casa das Histórias Paula Rego, um projecto pelo qual tanto trabalhou e que tanto amou. Como, infelizmente, já não pode defender-se, sinto que é minha obrigação esclarecer as coisas e corrigir a longa lista de erros, falsidades e equívocos, sobretudo no artigo assinado por um cavalheiro de nome Francisco Capelo.
Em primeiro lugar, permitam que diga quem sou: além de ser filho de Paula Rego, sou também director de Ostrich Arts Ltd., a empresa que se ocupa da colecção e gere todos os assuntos comerciais dela. Fui eu que negociei o contrato entre a minha mãe e o Município de Cascais, que estabelece, pormenorizadamente, todas as doações e empréstimos, bem como a gestão diária do equipamento, os seus protocolos, etc. E continuo a ser membro da Comissão Paritária representando os interesses da minha mãe no museu, o que significa que aprovo as exposições e supervisiono empréstimos extra de obras da colecção. A acrescentar a isto, faço a gestão das vendas da minha mãe, das avaliações e de mostras noutros museus internacionais (nesta altura temos uma previsão de vinte e duas [22] durante o próximo ano) e oriento o trabalho das galerias que a representam: Victoria Miro Gallery, Cristea Roberts Gallery e Galeria 111. Também me ocupo da gestão do arquivo e dirijo uma equipa de três arquivistas que se dedicam a tempo inteiro, nos nossos escritórios em Londres, à investigação do material para o catálogo raisonné. Há ainda a referir que são da minha responsabilidade os direitos de reprodução, autorizando (ou não) a publicação das imagens sujeitas a direitos (o que, a propósito, me permitiu saber que o Expresso não pediu autorização para reproduzir as imagens que ilustram os artigos). Assumi estas tarefas há dez anos, para que a minha mãe pudesse dedicar-se por inteiro ao trabalho no seu estúdio à medida que ia ficando mais velha.
E, acima de qualquer outra coisa, pude observar e admirar o trabalho da minha mãe durante mais de sessenta anos tendo obtido um íntimo entendimento do extraordinário talento que possuía – uma coisa que foi frequentemente mal compreendida. Uma das razões por que decidi realizar o documentário de longa-metragem Paula Rego: Histórias e Segredos tem que ver com o facto de que considerava haver muita informação errada sobre ela: tinha chegado o momento adequado a que a história de Paula Rego fosse conhecida através das suas próprias palavras.
Por isso, espero que acreditem que sei do que estou a falar.
Não posso dizer quem é o Senhor Capelo, visto que não o conheço, nem alguma vez falei com ele. Disseram-me que se trata de um coleccionador português que possui uma pequena colecção de pintura, mas que não terá grande coisa de Paula Rego. Com base no artigo que escreveu, tornou-se claro para mim que não é especialista na obra da minha mãe e muito menos no museu. Deste modo, não faço a menor ideia por que se considera qualificado para opinar sobre uma e outro.
O Papel da Casa das Histórias Paula Rego
Começo pelo museu. O Senhor Capelo parece pensar que a Casa das Histórias Paula Rego foi criada com a intenção de ser o fiel depositário de uma colecção permanente da obra de Paula Rego, com exemplos célebres de cada década da produção da artista. Este nunca foi o papel do museu. O que torna especial este equipamento é que todos os anos oferece entre duas a três exposições completamente novas centradas em aspectos e temas distintos do enorme opus criado por ela. Enquanto outros museus preferem expor, digamos assim, os grandes êxitos, nós, na Casa das Histórias preferimos proporcionar análises aprofundadas da obra de Paula Rego, com material que muitas vezes não foi exposto antes. Por um lado, especialistas como Catarina Alfaro, que é a nossa curadora principal, levam a cabo uma investigação aturada que dá origem aos textos dos nossos notáveis catálogos, por outro, Salvato Teles de Menezes e eu, como membros da Comissão Paritária, garantimos as condições para que as melhores obras sejam expostas. E tudo isto é possível porque a Câmara Municipal de Cascais, sob a orientação constante do Presidente Carlos Carreiras, disponibiliza os recursos humanos e fundos necessários e suficientes.
Estas exposições não só incluem quadros da colecção de Paula Rego, mas também de outros museus e coleccionadores de todo o mundo. Por exemplo, muito recentemente explorámos um aspecto praticamente desconhecido da obra de Paula Rego em Paula Rego e Josefa d’Óbidos: Arte Religiosa no Feminino, com sete salas carregadas de obras inspiradas na fé católica da minha mãe, enquanto a sala 0 era integralmente dedicada a obras seleccionadas de Josefa d’Óbidos. Duas mulheres separadas por cerca de quatrocentos anos que abordam o mesmo assunto mas com resultados muito diferentes. O Serviço Educativo do museu organizou na altura programas direccionados a escolas públicas e privadas que exploravam a mutável representação de espiritualidade.
A minha mãe emprestou setenta e uma (71) obras da sua colecção, a maioria das quais nunca tinha sido exposta, e o museu garantiu o empréstimo de mais de vinte (20) obras de outros museus, coleccionadores e Igreja Matriz de Cascais.
É justamente porque o nosso trabalho é tão precioso e singular que a Casa das Histórias Paula Rego ganhou tanto reconhecimento e prestígio em todo o mundo. Museus de países que vão dos Estados Unidos à China enviam delegações especiais todos os anos para ver como trabalhamos e não é raro adoptarem o nosso modelo de exposições. Ainda há pouco tempo uma grande equipa do New Museum of New York passou longas horas nas nossas salas de exposições e reservas levando com ela caixas repletas de catálogos que fomos produzindo. A razão para que esta reputação seja tão importante é que nos ajudou, até agora, a obter e a conceder empréstimos, sem qualquer dificuldade, em qualquer parte do mundo: a lista seria quase interminável. Se os museus e as seguradoras deixassem de confiar em nós, não seríamos capazes de organizar as exposições de elevadíssima qualidade que são o traço distintivo do nosso museu.
Por isso, quando o Senhor Capelo tenta minar o nosso trabalho, sem compreender convenientemente o que fazemos, coloca essa reputação em causa e poderia, se alguém lhe prestasse atenção, tornar mais difícil a nossa tarefa. É fácil destruir coisas, mas é muito difícil construi-las, peça frágil sobre peça frágil.
Doações e Empréstimos de Paula Rego
A minha mãe doou inicialmente quinhentas e trinta e cinco (535) obras de arte à Casa das Histórias/Câmara Municipal de Cascais. Nestas estavam incluídas duzentas e cinquenta e nove (259) gravuras e duzentos e setenta e oito 278) desenhos. Este número foi sendo aumentado ano após ano e, como é óbvio, as obras doadas mantêm-se no museu. O contrato assinado entre as duas partes proíbe a sua venda, sendo que a Casa das Histórias é o único museu no mundo que alberga a obra gráfica completa da artista. A somar a isto, Paula Rego também concordou em emprestar mais oitenta e seis (86) obras durante dez anos. Quando renovámos o contrato em 2019, as obras emprestadas tiveram de regressar ao Reino Unido exclusivamente devido ao Brexit. Quando se tornaram mais duras as questões aduaneiras, as obras, que pertencem a Ostrich Arts Ltd, a empresa da minha mãe, tiveram de regressar ao seu país de origem antecipando o encerramento de fronteiras. Como tinham sido pintadas em Londres, a Londres tiveram de regressar: tratou-se de mais uma das muitas consequências infelizes do Brexit, mas estas pinturas, apesar disso, bem como o resto da colecção de Paula Rego, permanecem à disposição da Casa das Histórias. A única coisa que se alterou foi o lugar de armazenamento. Assim, a alegação feita pelo Senhor Capelo de que as paredes ficarão vazias é totalmente injustificada.
Demasiado tarde?
O Senhor Capelo também alega que já é demasiado tarde para que o museu e o Estado Português possam adquirir obras da colecção de Paula Rego. Não consegui acompanhar este tipo de raciocínio, porque grande parte dele é bastante confusa, mas parece que tudo se resume à ideia de que a família terá de pagar 40% de Imposto Sucessório às Finanças britânicas. Assumo que para fazer isto, o Senhor Capelo crê que nós tenhamos de vender uma grande quantidade de obras. Também isto é absolutamente errado. A obra de Paula Rego é propriedade da sua empresa, Ostrich Arts Ltd., e como tal é susceptível de lhe ser aplicado o Business Property Relief que a isenta do pagamento de Imposto Sucessório. Também sugere, equivocadamente, que Paula Rego mudou para Victoria Miro Gallery para poder vender a sua colecção rapidamente.
Depois dedica-se a uma avaliação (mais um simples <<palpite>>, talvez) da colecção. Esta é a parte mais risível do artigo. Em primeiro lugar, parece ignorar o período mais valioso da produção de Paula Rego – os pastéis de 1994 a 2012. Em segundo lugar, não conhece a colecção. As oitenta e seis obras (86) que regressaram a Londres em 2019 representam apenas uma parcela da colecção. Em terceiro lugar, baseia largamente a avaliação num website chamado Artnet que assenta em preços do Mercado Secundário.
Os coleccionadores podem comprar obras em dois mercados muito diferentes: o Mercado Primário e o Mercado Secundário. Aquele refere-se à primeira vez que uma obra é vendida – normalmente pela galeria do artista, enquanto este cobre as vendas posteriores – principalmente através de leiloeiras. Embora o mercado secundário de Paula Rego esteja lentamente a aproximar-se do primário, as vendas deste último são ainda três a quatro vezes mais importantes do que as do outro. Isto acontece porque as obras mais importantes de Paula Rego quase nunca são leiloadas. Se os coleccionadores querem uma obra importante de Paula Rego que seja autenticada pelo seu catálogo raisonné terão de ir a uma das galerias dela ou convencer outro coleccionador a vender privadamente.
A razão de Paula Rego ter decidido mudar para Victoria Miro Gallery foi a de proteger o seu legado e não a de vender obras rapidamente – e esta continua a ser a nossa prioridade. Apesar da morte da minha mãe, continuamos focados em colocar as suas obras mais importantes em museus reputados de todo o mundo a preços bastante reduzidos, assegurando sempre que a Casa das Histórias pode pedi-las emprestadas para as suas exposições. Foi por isso que aceitámos vender <<Angel>> e <<Turkish Bath>> à Fundação Calouste Gulbenkian e o tríptico <<The Pillow Man>> ao Kunst Museum de Haia.
E entretanto continuaremos a emprestar obras da nossa vasta colecção à Casa das Histórias Paula Rego: temos mais de cento e dez (110) pinturas e de dois mil (2000) desenhos.
Portanto, em resumo, não é demasiado tarde.
Esvaziada?
A afirmação mais perturbadora do Senhor Capelo é de que a Casa das Histórias corre o risco de encerramento iminente porque em breve ficará esvaziada. Isto apesar de ter mais de quinhentas e sessenta (560) obras protegidas nas suas reservas, por via de um contrato que perdura até 2029, com uma opção de renovação por mais dez anos e do acesso à colecção particular de Paula Rego.
Esta semana o equipamento teve mais de duzentos (200) visitantes por dia e cerca do dobro durante o fim-de-semana, o que lhe confere uma das mais elevadas afluências entre os museus portugueses.
Quero convidar o Senhor Capelo a estar presente na inauguração da nossa próxima exposição (com trinta e seis [36] obras provenientes de Londres) em 27 de Outubro, dedicada à produção de Paula Rego da década de 1970 e ao modo como foi afectada pela revolução em 1974. Como sempre, a história de Paula Rego é também a História de Portugal. Espero que possa, assim, ter uma perspectiva mais abalizada da colecção da artista e perceber que a Casa das Histórias Paula Rego veio para ficar. Também será um prazer para mim apresentá-lo aos meus colegas: Carlos Carreiras, Salvato Teles de Menezes, Catarina Alfaro, Paula Aparício e o incansável Serviço Educativo.
Espero que essa visita o inspire a retractar-se e a apresentar desculpas públicas a todos aqueles que continuam a trabalhar para apresentar a obra de Paula Rego em todo o mundo e projectar a cultura de Portugal, o país que ela amou tão intensamente.
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