Cultura

História do ogre

28 outubro 2018 23:00

Vencedor do Prémio Renaudot em 2017, o romance de Olivier Guez acompanha a vida clandestina (na América do Sul) e o ocaso de Mengele, um dos maiores monstros do século XX

28 outubro 2018 23:00

Josef Mengele, o médico torcionário de Auschwitz, no seu uniforme das SS, à janela de um comboio, perto do final da II Guerra Mundial

Josef Mengele, o médico torcionário de Auschwitz, no seu uniforme das SS, à janela de um comboio, perto do final da II Guerra Mundial

foto hulton archive/getty images

Esta imagem de Josef Mengele, o médico de Auschwitz, paira como uma assombração sobre o livro de Olivier Guez — uma obra que se apresenta como romance, mas um romance não ficcional, que nunca se afasta da realidade histórica, antes utiliza os instrumentos da narrativa romanesca para tentar dar sentido às muitas zonas de sombra da biografia de Mengele, no período compreendido entre o fim da II Guerra Mundial e a sua morte, mais de três décadas depois, em 1979. O horror surge em flashes, acendendo momentaneamente no espírito do leitor imagens que já lá estavam, breves lampejos das trevas. Mas este não é um livro sobre o Holocausto. Nem sobre a tão evocada banalidade do mal. Quando muito, é uma aproximação à maldade absoluta que pode existir num homem banal.

Um homem que conseguiu escapar, como centenas de outros compatriotas e correligionários, para a América do Sul. “O Desaparecimento de Josef Mengele” começa precisamente com a chegada do médico, sob um nome falso (Helmut Gregor), a Buenos Aires. Com dinheiro e uma rede de contactos, ele integra-se sem grande dificuldade numa sociedade que decidiu acolher os “detritos da História”, abrindo-se a muitos nazis e outros fascistas, de quem se esperava que ajudassem a economia argentina a crescer, com o seu conhecimento tecnológico sobre barragens, mísseis e centrais nucleares. Era o tempo do casal Perón, Juan e Evita, “um urso com um uniforme de opereta e um pardal coberto de joias”. Um duo messiânico, que oferecia um justicialismo salvífico às multidões de descamisados, prometendo triunfar onde a Alemanha e a Itália haviam fracassado.

Mengele, porém, nunca se chega a sentir em casa. Mesmo do outro lado do mundo, obliterando a sua identidade, os fugitivos nunca estão completamente a salvo. Que o diga Eichmann, raptado pelos serviços secretos israelitas (acabaria na forca, depois do célebre julgamento em Jerusalém), ou, muito mais tarde, Klaus Barbie, o “carniceiro de Lyon”, extraditado da Bolívia para França, onde foi condenado a prisão perpétua. Ao contrário destes “monstros”, Mengele escapou sempre às perseguições da Mossad, bem como aos cercos de Simon Wiesenthal e outros ‘caçadores de nazis’. Como? Eis o mistério que Guez tenta compreender, enquanto narra a fuga de Josef para o Paraguai e, depois, para o Brasil.

Grande parte do romance consiste na descrição de uma vida suspensa, em lugares remotos, quintas isoladas ou favelas miseráveis. Mengele mora durante anos com uma família húngara, num clima de tensão permanente. Paranoico, passa o tempo numa torre de vigia, “em traje de apicultor e com uns binóculos Zeiss ao pescoço”, controlando as estradas e os carros que se aproximam, enquanto ouve, “melancólico ou sonolento”, óperas de Wagner ou cantatas de Bach no gira-discos. É uma existência triste, fechada numa “masmorra aberta para o infinito e longe dos homens”, mas que não altera a natureza de Josef. Ele nunca deixa de ser o que sempre foi: medíocre, arrogante, egocêntrico. Um ser amoral, incapaz de arrependimento ou remorso. Perto do fim, quando se reencontra com o filho, que não via há décadas, e este lhe pergunta sobre o que fez em Auschwitz, responde: “O meu dever de soldado da ciência alemã: proteger a comunidade orgânica biológica, purificar o sangue, desembaraçá-lo de corpos estranhos.”

Guez narra esta trajetória de fuga e decadência no tom certo: seco, quase clínico, destituído de pathos. O abismo da cegueira ideológica e do vazio moral, materializado nos gestos, pensamentos e ações de Mengele, é eloquente por si mesmo. E não deve ser esquecido, sobretudo num tempo em que o fascismo, com outras roupagens, volta a levantar a cabeça. “A cada duas ou três gerações, quando a memória estiola e as últimas testemunhas das chacinas passadas desaparecem, a razão eclipsa-se e surgem homens que voltam a espalhar o mal.”