Cultura

“O Homem Que Matou Dom Quixote” já pode encerrar o Festival de Cannes

Adam Driver e Jonathan Pryce em "O Homem Que Matou Dom Quixote", de Terry Gilliam
Adam Driver e Jonathan Pryce em "O Homem Que Matou Dom Quixote", de Terry Gilliam

Thierry Frémaux, delegado-geral do festival, anunciou em público na sala Debussy que a decisão dos tribunais lhe foi favorável no processo contra Paulo Branco e, para já, nada indica que o filme de Terry Gilliam não possa estrear-se nas salas francesas logo a seguir, tal como estava programado. Entretanto, Cannes começou em lume brando e tons de telenovela com o pior filme de Asghar Farhadi até à data: “Todos lo Saben”. Na Croisette, fala-se de tudo menos de cinema

Francisco Ferreira, em Cannes

É o final de uma longa novela, ditado pela decisão de um tribunal de Paris esta tarde: “O Homem Que Matou Dom Quixote”, de Terry Gilliam, vai mesmo encerrar o Festival de Cannes no próximo dia 18, estreando-se em seguida nas salas francesas com 300 cópias (isto se o caso não conhecer outros desenvolvimentos). Para o filme que o ex-Monty Python tenta concluir há 20 anos (e que tem Adam Driver e Jonathan Pryce no elenco), conclui-se aqui uma série de peripécias dignas do Quixote do título – e publicidade extra é coisa que não lhe falta neste momento. A Amazon anunciou recentemente que já não iria distribuir o filme nos EUA, decisão que surpreendeu e indiciava que os tribunais poderiam favorecer a Alfama Filmes de Paulo Branco (que interpôs uma ação de interdição à estreia da obra). Contudo, não foi isso que aconteceu e Cannes sai vitorioso da disputa com o produtor português.

Branco, pela voz do seu advogado, dissera que o festival estava na perspetiva de uma “humilhante derrota”, segundo o mesmo comunicado de imprensa de Cannes em que o festival acusou o português de “usar o festival ao longo da sua carreira para construir a sua própria reputação”. O distribuidor francês do filme, Philippe Aigle, da Ocean Films, afirmou hoje à The Hollywood Reporter que a ação de Branco foi mais uma tentativa de interferir com Cannes do que com os produtores da obra, já que a decisão final sobre os direitos da mesma só será conhecida a 15 de junho. Já com o evento em curso, soube-se também que Gilliam foi hospitalizado em Londres no passado fim de semana - afinal, por problemas de saúde bem mais ligeiros do que o acidente vascular cerebral então anunciado. O cineasta é esperado na Croisette com o resto da equipa, comunicou a sua agência de imprensa. E na sua página do Facebook, acabou de deixar uma mensagem em que diz estar recuperado: “We are legally victorious!”

Parece que Cannes pode agora encontrar alguma tranquilidade já que, de cinema, neste primeiro dia, tem-se falado muito pouco. As medidas de segurança contra o terrorismo foram reforçadas (entrar no Palais du Festival já não é muito diferente do que passar pelo controlo de um aeroporto) e parte da Rue d'Antibes, que trespassa o centro da cidade, esta pejada de blocos de cimento nos passeios para evitar atentados como o de Nice. Na conferência de imprensa que o diretor artístico de Cannes anunciou in extremis terça-feira, Frémaux parecia um boxeur no ringue a defender-se de todos os golpes. Ao #MeToo e ao #Time's Up, que estão na ordem do dia e clamam por mais mulheres no festival, lembrou Frémaux que trabalham em Cannes mais mulheres do que homens e que a australiana Cate Blanchett preside este ano ao júri (onde as mulheres, aliás, estão em maioria). Frisou ainda que, se este ano há apenas 3 mulheres numa competição com 21 obras (contra duas no ano passado), é preciso não esquecer que “só 7% da produção de cinema mundial tem assinatura feminina.” E que a tarefa de um festival de cinema “é selecionar filmes pelo seu valor artístico” sem fazer descriminações de género. No fim do festival, 16 atrizes francesas vão também subir a passadeira vermelha por ocasião do lançamento em França do livro “Noire n'est pas mon métier”, de Nadège Beausson-Diagne: é uma recolha de depoimentos daquelas profissionais que denunciam o racismo de que foram alvo nos castings em que procuraram trabalho.

Num festival que colocou este ano o público e a imprensa a ver os filmes do concurso ao mesmo tempo (“não foi também preciso esperarmos todos até ao último segundo para vermos como terminou o último Barcelona-Real Madrid?”), Frémaux tem contudo problemas bem mais graves para resolver do que a falta de acordo com a Netflix - o delegado-geral frisa manter com a

plataforma de streaming um diálogo positivo mesmo depois de ter perdido “Roma”, de Alfonso Cuarón, filme desejado para a competição e que a Netflix produziu: mas Cannes exige que as obras a concurso pela Palma de Ouro se estreiem nas salas... – ou a disputa de direitos de uma obra como “O Homem Que Matou Dom Quixote”. É que esta 71ª edição está marcada pela ausência de vários artistas e pela censura de obras nos seus países de origem por razões políticas.

É remota a possibilidade do iraniano Jafar Panahi, que está em prisão domiciliária em Teerão, chegar à Croisette para apresentar o seu novo trabalho (rodado à revelia das autoridades iranianas), “Three Faces”. O encenador e realizador russo Kirill Serebrennikov, também convidado para a Competição (por “Leto”/”L'eté”, sobre o nascimento da cultura rock na soviética Leninegrado do início dos anos 80), continua retido em Moscovo por um alegado desvio de fundos públicos. Foi acusado de fraude massiva e está em prisão domiciliária, impedido de se exprimir em público e de sair do país. Em Moscovo, há quem leia na acusação um ato de censura a um artista que se tornou incómodo para o poder. “Rafiki”, primeira obra de uma cineasta do Quénia, Wanuri Kahiu, sobre a história de amor de um casal de lésbicas (é, de resto, o primeiro filme do Quénia a estrear-se em Cannes, no concurso do Un Certain Regard) foi proibido no seu país e pelo jugo de uma sociedade homofóbica. Conta o Libération que Nairobi persuadiu a cineasta a remontar o filme e a extrair as cenas de sexo “em nome da moral queniana”, algo que a artista não aceitou.

No meio de tudo isto, “Todos lo Saben”, que inaugurou o festival e estreou em simultâneo em França (correm rumores de que a Netflix o quer adquirir para outros territórios), passou em segundo plano – e não é, de facto, filme para mais. Foi rodado em Espanha pelo iraniano Asghar Farhadi (com fotografia de José Luis Alcaine), traz o casal de intérpretes mais célebre do país vizinho, Penélope Cruz e Javier Bardem, a maior vedeta argentina do momento, Ricardo Darín, mas o filme falha com estrondo onde habitualmente Farhadi é mais reconhecido e premiado: no argumento. Penélope Cruz chama-se Laura, volta a sua vila natal espanhola com os dois filhos para as bodas da irmã, deixando na Argentina o marido (Darín). E ali reencontra Paco (Bardem), uma velha paixão que o filme sugere não estar ainda acabada. O que se segue após o rapto da filha adolescente de Laura, deixando-a devastada, é sobretudo uma tragédia familiar em que as diferenças de classe social, dívidas antigas e ajustes de contas que ninguém esqueceu começam a vir à tona. Nada de novo no cinema de Farhadi e nas suas histórias sobre o egoísmo, a culpa e a procura da redenção.

O que é lamentável, é a inépcia dos raptores e as suas mensagens de telemóvel que “ninguém pode localizar” (porque os pais querem resolver o assunto sem chamarem a polícia): o espectador não só suspeita imediatamente de onde eles vêm como começa a desacreditar no que vê. Ou o desespero forçado do par central (Cruz e Bardem fazem tristes figuras ao telemóvel à espera das mensagens), a roçar caricaturas de telenovela. Ou os segredos mais ou menos sórdidos das personagens que o filme vai lançando aqui e ali, no fundo para tapar um thriller que Farhadi talvez tenha imaginado mas que não sabe fazer. “Todos lo Saben” deixa-nos a impressão de que o iraniano, fora do seu território como peixe fora de água, está a tentar propôr-nos um best of da sua obra com um elenco internacional que nunca teve.

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