2010: A mesa no Bairro Alto onde José Saramago lia, escrevia e comia pataniscas
Restaurante Farta Brutos
O escritor José Saramago, falecido em 2010, era cliente habitual do restaurante Farta Brutos, no Bairro Alto, em Lisboa. Nesta casa de comida tradicional portuguesa cuja origem remonta ao início do século XX, o Prémio Nobel da Literatura estendia frequentemente os almoços pela tarde fora. Lia, tomava notas e escrevia na mesa preferida, ao canto da sala, que conserva uma placa em sua memória. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, fazemos uma viagem no tempo, com o apoio do Recheio, para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal
O mundo das letras fica mais pobre a 18 de junho de 2010, com o anúncio da morte de José Saramago. O escritor português faleceu na casa onde vivia com a esposa Pilar del Río, na ilha espanhola de Lanzarote, aos 87 anos. Não resistiu a uma “múltipla falha orgânica", após doença prolongada, e "esteve acompanhado pela sua família, despedindo-se de uma forma serena e tranquila", escrevia na altura a página da Fundação José Saramago. Natural de Azinhaga, na Golegã, e autor de obras intemporais como “Memorial do Convento”, “A Jangada de Pedra”, em 1986, “O Evangelho segundo Jesus Cristo” ou “Ensaio Sobre a Cegueira”, publicado em 1995, recebeu muitas distinções, como o Prémio Camões e o Prémio Nobel da Literatura, em 1998. No livro de condolências, Francisco Oliveira escrevia ao saudoso amigo: “José, se lhe apetecer umas pataniscas, escreva-me”. Francisco foi co-proprietário, com o sócio Ramiro Silva, do histórico restaurante Farta Brutos, em Lisboa, que funcionou quase como uma extensão da casa do Nobel português.
Pataniscas à Saramago com arroz à Pilar
José Saramago adorava pataniscas de bacalhau com arroz de tomate, prato rebatizado na ementa do Farta Brutos como “Pataniscas à Saramago com arroz à Pilar” (€15,90), atendendo aos gostos do escritor e da esposa, que aprecia arrozes malandrinhos como o de tomate ou de grelos. O autor sentava-se na mesa do canto, discreta, com visão para a sala. Uma placa com a inscrição “mesa e lugar preferido” de José Saramago revela o dia em que aqui entrou pela primeira vez, a 14 de maio de 1980. Ao lado, uma cópia do diploma do Prémio Nobel, entregue simbolicamente por Pilar e Carlos Reis ao restaurante. O original tinha sido cedido por Saramago à Biblioteca Nacional, num ato sem protocolo, no restaurante. “Saramago não queria ficar com o documento do Nobel em casa, dizia que o prémio era do país. Entregou-o aqui à Biblioteca Nacional, na figura de Carlos Reis, juntamente com o manuscrito d'O Ano da Morte de Ricardo Reis, entre pataniscas, um copo de vinho tinto e uma graça: cuida bem disto, que os suecos tardam a entregar estas coisas”, recorda o filho de Francisco, Rogério Oliveira, atual proprietário do Farta Brutos.
Perto da mesa preferida de Saramago estão uma mini biblioteca com obras suas, uma agenda alusiva ao centenário do nascimento, assinalado em 2022, e a foto do escritor com responsáveis do Teatro Nacional de São Carlos em frente ao Palácio Nacional de Mafra. Junta-se-lhe uma espécie de carta de desculpas do escritor ao Farta Brutos. “Começa a dizer que foi culpa do Convento não terem feito o almoço de cerimónia da ópera Blimunda [inspirada no Memorial do Convento] no Farta Brutos, como era habitual fazer todas as coisas, mas em Mafra porque o Convento estava em Mafra”, explica Rogério.
José Saramago na mesma mesa de Baptista-Bastos e Pilar
Receber amigos e escrever à mesa
Não era só a comida que atraía o escritor ao Farta Brutos, mas também o ambiente e a consideração do staff. Por vezes, Francisco dizia-lhe que tinha de sair depois do almoço. “O meu pai fechava a porta e o Saramago ficava sentado na mesa. Enquanto se alimentava, escrevia, tomava notas e lia, e ficava aí toda a tarde, ao ritmo dele, a ler e a escrever, com uma caixa de bolos secos. Isto quando vinha sozinho, porque quando vinha com convidados era uma celebração”, revela Rogério, para quem o autor “não era nada austero”, mas sim reservado. Podia ir cumprimentar Mário Soares, mas não fazer disso uma festa, seguia para o seu canto. Quando lançava um livro, “vinha oferecer um exemplar aos que cá estavam”, em gesto de simpatia. Encontrava-se aqui com muitas figuras conhecidas, de Alçada Baptista a Jorge Amado e a Baptista-Bastos, que “era maravilhoso e sempre muito aprumadinho, com o seu lacinho”, comenta Rogério. Muitos escritores, inclusive da Academia Brasileira de Letras, começaram a vir ao restaurante depois do Nobel, alguns trazidos pelo próprio, outros para jantar na sua mesa em busca de inspiração.
“Sim senhor, façam o filme”, disse Saramago ao realizador brasileiro Fernando Meirelles, quando se reuniram no Farta Brutos para conversarem sobre a película “Blindness”, adaptada da obra “Ensaio sobre a Cegueira”. O escritor “emocionou-se até às lágrimas ao ver o filme pela primeira vez”, escrevia o Expresso em 2008. Quando se apercebeu que o fim estava próximo, Saramago tentou “organizar as coisas que tinham de ser organizadas” e, cumprindo o seu desejo, familiares de Saramago, Pilar e os irmãos “vieram ao Farta Brutos comer pataniscas em sua homenagem” depois de ele falecer. Pilar continua a frequentar o restaurante.
Foto antiga dos sócios Ramiro Silva e Francisco Oliveira
História secular
Desde 1904 que o Farta Brutos opera na esquina da Travessa da Espera com a Rua das Gáveas, tendo aberto pela mão do comandante de bordo galego António Fortes. Na altura cingia-se à sala mais pequena, a atual sala de refeições principal era uma chapelaria. As iscas, o bacalhau e o polvo confortavam “a malta dos teatros, da cultura e dos jornais”. António passou o negócio ao filho. Mais tarde, chega à posse dos pais de Dinis Machado, que “cresceu aqui dentro, mas não abraçou a restauração”, enveredando pelo jornalismo e a escrita. A seguir ao 25 de Abril, Fernando Lopes, do icónico Tavares Rico, comprou o Farta Brutos e fez dele o Tavares Pobre. “Não tinha clientes no Tavares Rico, batiam-lhe à porta a chamá-lo de fascista. Tenta receber os clientes do Tavares Rico aqui, onde passariam despercebidos. Fez uma renovação e, em frente às portas e janelas, mandou pôr grades de ferro para as pessoas sentirem que, aqui dentro, ninguém entraria”, mas o projeto “não funcionou”, refere Rogério.
Francisco Oliveira e Ramiro Silva pertenceram às gerações de migrantes nortenhos que fizeram carreira na capital. Chegaram a trabalhar no Tavares Rico e, em 1980, estava Francisco a trabalhar como escanção no Tágide e Ramiro na Cervejaria Alemã, quando decidiram avançar para um espaço próprio. Ficam com o Tavares Pobre, que retoma a designação de Farta Brutos. Para este restaurante “trouxeram todas aquelas figuras que conheciam há muitos anos”. Ramiro semeou uma videira em frente: “Dava uvas, cobria o restaurante e não se viam as grades. Os clientes entravam pela porta de madeira, no meio da vinha”, descreve Rogério Oliveira. Já funcionavam as duas salas, espelhadas, e desse tempo restam objetos como o aparador e o carrinho das sobremesas. “Sobretudo, o que é original é a forma como se recebe e como encaramos as pessoas que cá vêm, que são clientes e amigos. É fundamental que comam bem, mas também que se sintam bem, ensinamento que me foi passado pelo meu pai e o Ramiro”, sublinha Rogério Oliveira. A sala mais pequena era um bar ladeado por um sofá e com uma mesa mais baixa ao centro. Aí ficava por vezes Ary dos Santos, a beber uns copos com os amigos, ou Natália Correia, petiscando sardinhas de escabeche.
Farta Brutos fica numa esquina do Bairro Alto
Nos anos 80 vive-se um “frenesim” na zona, a fervilhar de jornalistas, a ver nascer restaurantes e bares, mas ainda com “o senhor que arranjava as cadeiras, as mercearias, tabernas e papagaios à porta”. A boémia do Bairro Alto alimentava-se desta mistura, antes da debandada da indústria e de o Bairro se tornar “um deserto ao almoço”. Rogério estudava ali perto e começou a frequentar o Farta Brutos em criança. Ia com o pai aos frescos do Mercado da Ribeira e almoçava no Farta Brutos, “furando todas as barreiras” na abordagem a Saramago, Alçada Baptista ou José Cardoso Pires, que achavam piada à ausência de protocolo. Alçada Baptista era “grande amigo da casa e um doce de homem”. Rogério tinha “muito medo” de José Cardoso Pires: “Tinha uma voz muito forte, do tabaco e do whisky, um ar rude e dizia puto, traz-me um whisky”. O receio só desapareceu quando começou a ler o que escrevia. “Era um tipo maravilhoso, um verdadeiro lisboeta”, reconhece. Como vinha mais ao jantar, Cardoso Pires raramente se cruzava com Saramago, um habitué do almoço. Se surgisse ao almoço, “vinha de direta, estava perdido”, está em crer Rogério. Na ementa posterizaram-se as “Sardinhas à Cardoso Pires” (€15,90), lembrando o prato favorito do escritor: sardinhas albardadas (sem cabeça nem espinha, abertas ao meio e fritas), guarnecidas de arroz.
Salman Rushdie agradeceu o almoço verdadeiramente excecional
Baptista-Bastos, Sarney e Salman Rushdie
“O meu pai agregava todas as pessoas, fosse o primeiro-ministro ou um homem sem visibilidade social. Sentiam-se bem ali, vinha gente da literatura, da música, os incógnitos e políticos porque este era um campo neutro”, analisa Rogério. Repletas de fotos, quadros, notas e dedicatórias, as paredes atestam essa capacidade agregadora e o carisma de Francisco, figura acarinhada no mundo gastronómico, nas artes, política ou desporto. Identifica-se um escrito do escritor (e político) brasileiro José Sarney, uma poesia de Manuel Alegre, imagens de Baptista-Bastos, Eduardo Lourenço e Nélida Piñon, bem como Urbano Tavares Rodrigues, “a pessoa mais delicada” que Rogério conheceu. O “enorme” Fausto, apreciador de polvo frito, era outro cliente do coração, a par de Carlos do Carmo, do realizador João Botelho, Maria Bethânia, Fafá de Belém, Jorge Amado que era “muito amigo” de Saramago, Sérgio Motta e Gilberto Gil, que em 2017 escreveu, sobre a refeição: “Que bruta fartura, que baita bom gosto”. No desporto, destaque para Eusébio e Abel Xavier, que Francisco acompanhava desde a passagem pelo Estrela da Amadora.
Enquanto observa a serigrafia de Júlio Pomar com a inscrição “Vivó cozido do Farta Brutos”, saiba que Mário Soares conhecia Francisco desde o Tágide e do Tavares, continuando a vir ao Farta Brutos, mas também “ex-ministros de Salazar”. Francisco era o mestre de cerimónias, conhecia todas as figuras e quis sempre que esta fosse uma “casa democrática” aberta a todos, da esquerda à direita. Apareceram atores da série “O Senhor dos Anéis” e até um astronauta russo, isto, é, “figuras deste planeta e do outro”. Salman Rushdie veio em 2016 e agradeceu o almoço “verdadeiramente excecional” que teve. Expõem-se ainda os antigos marcadores de mesa em cerâmica, que eram como “um mimo” para muitos habitués, incluindo Raul Solnado, João Cutileiro, António Tavares-Teles, Leonor Xavier ou Margarida Ribeiro dos Reis, que foi dona do jornal A Bola e vinha aqui almoçar diariamente.
Um espaço de comida tradicional
Peixinhos da horta são “um fenómeno”
Quem se cruzou com muitas dessas figuras foi a estimada Fernanda Gomes, funcionária há 25 anos. Sobre Saramago, por exemplo, diz que “entrava, não falava muito, mas era amável e muito boa pessoa”, passando por vezes as “tardes ali a escrever”. Fernanda considera que uma das razões para os clientes voltarem ao Farta Brutos (Travessa da Espera, 16 e 20, Lisboa, Tel. 213426756) é a qualidade do serviço e o facto de ser “simpática para toda a gente”. Com a morte de Ramiro, Francisco Oliveira equacionou fechar a casa, mas conseguiu convencer o filho, Rogério Oliveira (então já com outros negócios e projetos musicais), a juntar-se ao restaurante em 2011. Não como funcionário, mas como sócio, sob proposta do próprio Rogério. “A partir de agora, és tu que decides, estou aqui como cicerone e agora é que vou curtir”, comentou o pai.
Rogério fez obras, mandou cortar as vinhas e tirar as grades para os transeuntes verem o espaço da rua para dentro. A entrada passou a fazer-se pela atual sala principal. Francisco faleceu em 2018 e, já depois da pandemia, colocaram-se algumas mesas de esplanada no exterior, ainda mais perto da dinâmica do Bairro. A cozinha também evoluiu, caindo algumas Influências estrangeiras que ainda se serviam no início dos anos 80, como o Eisbein (joelho de porco) e chucrute (tradicionalmente, uma conserva de repolho fermentado). “Quero é aprimorar a cozinha tradicional portuguesa, apresentá-la de outra forma”, assume Rogério Oliveira. Nas entradas servem-se os típicos “Peixinhos da horta” (€8,90), que são “um fenómeno”, o “Queijo no forno” (€8,90), as “Sardinhas de escabeche” (€9,90), a “Sopa de peixe” (€9,90) e as “Amêijoas à Bulhão Pato” (€18,90). Além das referidas “Pataniscas à Saramago com arroz à Pilar” e “Sardinhas à Cardoso Pires”, destacam-se nos principais o “Arroz de línguas de bacalhau” (€22) e a “Língua de vitela estufada em vinho tinto” (€18,90), que fica “horas a cozer em lume brando e é uma iguaria” acompanhada de batatas a dois tempos e verduras. Há ainda “Bacalhau à Brás” (€17,90) ou assado, o “Polvo à Lagareiro” ou frito, o “Arroz de peixe à Poveira” e o “Coelho frito com açorda” (€18,90). A dona Fernanda é a doceira de serviço e não revela nem por nada a receita da excelente “Salada de laranja” (€7,90). Pergunte ainda pelos “Papos de anjo” (€7,90), o “Leite creme”, o “Doce de ovos” ou a “Pera em vinho tinto”.
Farta Brutos
Em 2023, a desejada mesa de Saramago continua no seu lugar, inspirando novas gerações de escritores e pensadores, sob o olhar analítico de uma imagem de Saramago a preto e branco. O Farta Brutos continua a ser um restaurante onde se come bem e onde se é bem recebido. Na definição de Rogério, uma “grande sala de estar de amigos”. É normal estar à mesa e reencontrar alguém: “Lisboa é pequeníssima e, quando temos os mesmos interesses, acabamos por nos encontrar quase todos nos mesmos sítios. Isso acontece no Farta Brutos, quem está mais ou menos nesta sintonia acaba por aparecer”, constata o proprietário. A fadista Mariza conhece um pouco desse espírito especial, algo insondável, que caracteriza a casa. Certo dia apareceu com uma embaixadora e, noutra mesa reservada pela Fundação José Saramago, estava um crítico literário que era seu fã e tinha perdido um concerto da cantora. “Eu e a Pilar organizámo-nos e a Mariza disse que cantava, com certeza. Fechei o restaurante e ficou só a mesa da Fundação e a da Mariza. Fui à Tasca do Chico buscar uma guitarra e uma viola e fez-se aqui um concerto maravilhoso. Estas coisas acontecem assim...”
Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, fazemos uma viagem no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.
Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:
A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.
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