50 Anos, 50 Restaurantes

1978: O primeiro templo vegetariano abre portas a Lisboa

OS Tibetanos, a servir comida vegetariana desde 1978
OS Tibetanos, a servir comida vegetariana desde 1978

Começou a servir refeições, em privado, alguns anos antes, mas foi em 1978 que o restaurante Os Tibetanos abriu as portas a Lisboa e deu a conhecer um novo mundo: o vegetarianismo. Primeiro iniciou-se um centro de yoga e meditação budista. Depois veio a comida saudável, à base de vegetais. Estas apostas seriam as melhores aliadas: duas faces da mesma moeda, complementando-se na defesa de uma filosofia de bem-estar, em que a mente e o corpo se harmonizam. Phuntsok Dolma, a atual cozinheira e responsável pelo restaurante, preparou as refeições para o Dalai Lama, aquando da visita a Portugal, em 2001. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, em parceria com o Recheio, vamos voltar atrás no tempo para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas em Portugal.

Passaram mais de 20 anos desde que os colegas de Pedro Gabriel o convenceram a entrar no restaurante Os Tibetanos, em Lisboa. Habituado a comer carne, não pode dizer que a experiência tenha sido das mais agradáveis, até porque os vegetais não estavam no topo das preferências. Ainda assim, foi voltando. A “sorte” de trabalhar numa instituição bancária ali perto, permite-lhe vir regularmente, à hora de almoço, num intervalo que é um bálsamo: “Este restaurante é um oásis no meio da cidade, da confusão e stresse diário. Enquanto estamos aqui, ficamos em paz e bem connosco e saímos com as energias recarregadas, sente-se uma boa energia”. O ambiente da sala induz a esse estado de espírito. Os verdes, vermelhos, amarelos e azuis, bem vivos, ligam-se aos elementos naturais, como a Água, a Terra ou o Fogo. E ainda à bandeira do longínquo Tibete, cujo mapa também se observa. As colunas lembram um templo, as bandeiras e figuras “protetoras orientam no bom caminho”, as máscaras, os candeeiros em papel reciclado, budas e os instrumentos musicais utilizados em oração. Num forno queimam-se incensos para “alimentar os bons espíritos, limpar o ar e manter a energia negativa fora de nós”, explica Dawa Tashi, gerente do restaurante Os Tibetanos, em conjunto com a mulher, Phuntsok Dolma. Numa das paredes do jardim de inverno cai uma cascata e noutra vê-se uma bandeira alusiva a um grande cerimonial em que o guru, representado ao centro, dá ensinamentos de budismo.

Percorra a fotogaleria:

Pedro Gabriel tornou-se cliente assíduo e deixou-se conquistar, afinal, pela comida. Cativou-o a qualidade dos alimentos e é vegetariano desde 2005. Sublinha que aqui os pratos “são confecionados com muito amor”. Não é fundamentalista, admite que haja pessoas que, “por uma razão qualquer”, não consigam ser vegetarianas, mas afirma que se sente “muito melhor com esta dieta”, em que não entram carne nem peixe. Despertou em si, também, a “empatia para com os animais e o seu sofrimento”.

Em busca do bem-estar

Antes do restaurante, instalou-se no edifício um centro tibetano de orientação budista. Um português concretizou o projeto com o apoio de mestres tibetanos e o mote de divulgar uma “filosofia de bem estar, de atitude perante a vida e de partilha”, através da yoga e da meditação. Manuela d'Almeida está cá desde o início. Procurava “algo de diferente” e um colega falou-lhe no centro. Espreitou, gostou e começou a fazer yoga e meditação até hoje. O ambiente era “muito familiar”, ideal para se alcançar um certo bem-estar e equilíbrio entre a mente e o corpo. Para isso era preciso, ainda, promover uma boa alimentação e então o caminho foi disponibilizar pacotes para se usufruir de todas as componentes.

Nos primórdios, havia quem morasse neste centro e cozinhava-se só para os alunos. Todos ajudavam nas tarefas e funcionavam em comunidade. “Martela aqui, pinta acolá, temos dinheiro para comprar pratos?”, ouvia-se dizer. Só se comprava o que “tinha qualidade”, princípio ainda intocável. Sensivelmente a partir de 1978, começam a servir comida vegetariana de porta aberta, o que fez do restaurante Os Tibetanos um precursor nessa via. Lá em cima, o Terraço do Finisterra oferecia vista para o rio e as pessoas “adoravam ficar a ver a lua a nascer”. De uma salinha, “mínima, pequenininha”, o projeto foi crescendo e otimizando, ao ritmo dos fundos disponíveis.

Dawa Tashi e Phuntsok Dolma, os atuais responsáveis pelo restaurante Os Tibetanos

“O objetivo era levar às pessoas um conceito diferente, uma forma diferente de olhar para a vida, com comida mais saudável, yoga e meditação. Havia uma dinâmica nova, as pessoas vinham ver como era e gostavam, ficavam e voltavam. O que se oferecia fazia sentido, a comida e os produtos eram bons. Não é um restaurante em que se entra só para comer”, refere Manuela d'Almeida, que se envolveu na gestão. As filas iam escada acima, desde a porta de entrada. “Havia imensa curiosidade, era o primeiro [vegetariano], tínhamos um conceito diferente e as pessoas chegavam e gostavam”, conta Manuela. No final da década de 80, cedeu-se o espaço da atual sala de refeições, um antigo cabeleireiro. Incluía um pátio ou jardim de inverno aberto, e entretanto coberto. Continuaram as filas e muitas vezes, pelas 21h15, havia que fechar a porta “porque já estava tanta gente, tanta gente, tanta gente, que era uma loucura!”. “Oficializou-se tudo, a dinâmica do restaurante tornou-se mais complexa, e passou a chamar-se Os Tibetanos”, explica Manuel d'Almeida. Em março de 1993, José Saramago concluía, no livro de honra, que este “é um lugar de paz e de boa comida”.

Chapaklé no restaurante Os Tibetanos

Especialidades tibetanas

Dawa Tashi ainda viu as filas quando chegou, em 2001, já a sua mulher, Phuntsok Dolma, trabalhava no restaurante há um ano. Têm ambos ascendência tibetana, mas Dawa nasceu no Butão e Phuntsok na Índia, país onde se casaram. Vêm para Portugal e Phuntsok assume, entretanto, a cozinha. Na ementa já constavam os vegetais, ingredientes como o tofu (produzido a partir da soja) e o seitan (proteína vegetal), os cogumelos shiitake e os cereais. Da fase inicial subsistem clássicos como o “Crepe recheado com tofu e vegetais” (€11), o “Bife seitan com natas e cogumelos” (€11,50) e o “Caril com seitan” (€11,50). Os anos passam e a gastronomia aperfeiçoa-se. Dawa e Phuntsok introduziram variedade, pratos tibetanos e a comida ficou “mais saborosa”.

Em vez de um momo, passam a servir três: de legumes, de seitan e de espinafres com queijo, que tem sido “um sucesso”. Os “Momos” (desde €11,90) são pastéis tibetanos recheados, fritos ou no vapor. “Não é um prato de todos os dias no Tibete, é mais associado a pessoas ricas ou ao consumo nalgum festival, uma ou duas vezes por ano”, elucida Dawa. Começaram a fazer “Ting Momo” (€4), pão tibetano ao vapor (pode ser crocante), "Chapaklé" (€4,50), que são pastéis tibetanos em forma de meia lua recheados com seitan e legumes. O “Amdo Bhaley” é pão tibetano servido com manteiga, queijo ou picante. “O Tibete é muito frio e não tem muita variedade, porque não há muitos ingredientes. Agora tem mais, mas naquela altura... Lá, as pessoas consomem mais produtos de animais porque senão era difícil sobreviverem, precisam de gordura. Também comem muito uma sopa misturada com carnes, ossos, espinafres ou nabos e que nós ainda não fazemos”, comenta Dawa. Da Índia vieram vários caris e outras especiarias, servidas com moderação. “As pessoas não estavam habituadas a comer picantes e especiarias, agora pedem mais”.

Restaurante Os Tibetanos, em Lisboa

Gelado de pétalas de rosa

As especialidades mais procuradas pelos clientes são o “Momo de espinafres com queijo” (€12,50) – há versões com recheio de vegetais ou de seitan -, o “Caril de manga com tofu” (€11,90) condimentado à tibetana, e o “Bife de tofu com queijo de cabra” (€11,50) gratinado no forno. “É o trio best-seller”, confirma o funcionário Joaquim Piteira. Boa saída têm ainda o “Caril de legumes com ovo cozido” (em cima) e o “Caril de espinafres com tofu ou queijo”. Na ementa do restaurantes OS Tibetanos constam o “Pak Tsey” (seitan e tofu salteados com legumes) e o “Ping Sha Alu” (€11), uma jardineira de seitan com batatas, algas e “Ting Momo”. As sobremesas são muito apreciadas: prove a “Tarte de papaia com requeijão” (€4,50) e a “Tarte Dolma com chocolate e castanha” (€4,50), e pergunte pelo “Gelado de pétalas de rosa com iogurte” (€4,20), pelos sumos naturais e a Lassi de fruta. Disponibiliza-se, também, um Menu Executivo (€13) ao almoço, de segunda a sexta-feira. É composto por uma sopa de legumes, prato do dia e duas sobremesas, e os pratos mudam diariamente. Acompanha com uma tisana do dia ou uma água e inclui café. Pedro Gabriel elogia a “Lasanha de espinafres e requeijão” que, volta e meia, é sugestão do dia. Porém, “todos os outros pratos apresentam uma qualidade excecional”.

Os Tibetanos, em Lisboa

Cresce o vegetarianismo

Dos muitos restaurantes vegetarianos que Pedro Gabriel conhece, este continua a ser o “de eleição”. Há alguns anos, ainda se “contavam pelos dedos de uma mão” os que existiam na cidade. Houve, entretanto, uma “explosão muito grande” da oferta. Espaços mais generalistas incluem cada vez mais opções vegetarianas e crescem os menus de degustação “verdes” no segmento de fine dining. Atingir este patamar só foi possível com persistência e combatendo preconceitos... “Muitas pessoas tinham ideias erradas do vegetarianismo, como a de sair com fome ou a comida não ter sabor. Uns porque não investigaram e desconhecem, outros por rejeição: são carnívoros e não querem saber de mais nada. Tínhamos clientes que diziam que iam trazer um amigo que só gostava de carne: Começávamos por sugerir sabores que identificavam, como o Filete de Quorn, à base de micro-cogumelos prensados, com molho de natas, e que tem um sabor final parecido ao da galinha. A partir daí, vinham mais vezes. Outros, mais reticentes, só comiam uma sopinha. Hoje em dia, as pessoas estão muito mais abertas”, explica Manuela d'Almeida. As pessoas saíam agradadas, “se não fosse pela comida seria pelo ambiente”, e voltavam. Joaquim Piteira nota que a maioria nem é vegetariana ou vegana, “gostam de fazer uma transição e uma alimentação diferente, uma espécie de limpeza em relação ao excesso de carnes, aproveitando os legumes”.

Momos de espinafres com legumes

Na cozinha do restaurante Os Tibetanos também se definem estratégias para cativar o público. Substitui-se o peixe por tofu e a carne por seitan, produtos igualmente nutritivos. As lentilhas são “muitíssimo boas” e o molho de soja dá um “gostinho saboroso”, tal como as especiarias. Segundo Dawa Tashi, a medicina tibetana “trata muitas doenças com ervas, especiarias e flores das montanhas”. Algumas ajudam o intestino a trabalhar melhor. Por outro lado, a queima de incensos liberta aromas que ajudam a “curar e limpar a alma, a purificar”, uma ideia apoiada por Manuela: “Não é só o cheiro, que é agradável. Há incensos mais neutros e outros mais terapêuticos, feitos especificamente para as pessoas relaxarem e acalmarem”. Na lojinha encontra incensos tibetanos, taças, pulseiras e japamalas, que são terços de reza tibetana com 108 contas representativas de mantras.

Phuntsok Dolma, Dalai Lama e Dawa Tashi, em foto tirada em Lisboa

Em 2001, o líder espiritual tibetano, Dalai Lama, visitou Portugal e, quando soube da presença e do trabalho de Phuntsok e Dawa, chamou-os para cozinharem para si. Acompanharam-no Porto, em Coimbra e no hotel Tivoli, em Lisboa. “Perguntou como chegámos aqui, se vínhamos diretamente do Tibete, e nós dissemos que não, tínhamos vindo da Índia. Se lá estivéssemos, não íamos conseguir falar com ele. Gostou muito da comida, fizemos pão, lentilhas, momos e tugpa, uma sopa de massa tibetana com espinafres e legumes”, revela Dawa Tashi. A foto que tiraram com Dalai Lama, pelas 5h00, antes da partida para Itália, decora o restaurante Os Tibetanos (Rua do Salitre, 117, Lisboa, Tel. 213142038), que abre todos os dias ao almoço e ao jantar.

Em 2005 não cozinharam, mas voltaram a encontrar-se com Dalai Lama. Manuela esteve presente e impressionou-se com esta figura mundial: “Mais do que inspiradora, é a energia que a pessoa transmite, aquele sentimento de bondade natural. Olhamos para uma pessoa e sentimos essa energia, essa presença. Não é achar que é boa ou simpática porque fez atos bonitos, não, é a presença, a energia, o sorriso que se sente e capta imediatamente. Isso é que é tocante”.

No piso superior do restaurante Os Tibetanos mantém-se o templo budista, à espera de novos alunos para o ano letivo de outubro ao final de agosto. Um plano sereno de yoga, meditação e a certeza de que até diante do tacho se podem dizer mantras, enviando “energia positiva para a comida” saudávelque vão saborear.

O templo budista no edifício do restaurante Os Tibetanos

Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, voltámos atrás no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.

Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:

1972: O restaurante bar de Lisboa que se transformou na segunda casa do Expresso

1973: O tributo a Eusébio e uma mesa para a eternidade

1974: O Pote que ajudou a cozinhar a Revolução dos Cravos

1978: Produtos diferentes, vegetarianismo embrionário

Quando Carlos Saraiva chegou ao Recheio da Figueira da Foz, em 1978 – hoje é gerente na loja de Coimbra -, a área dos frescos ainda não existia. Vendiam-se massas, arrozes e feijão, mas para clientes como restaurantes vegetarianos “não devia ser fácil encontrar artigos” na zona, já que frutas e o setor dos legumes ainda seriam uma miragem. O próprio conceito do vegetarianismo, abraçado pelo Restaurante Os Tibetanos em Lisboa, era embrionário no país: “Na Figueira da Foz acho que não havia nenhum restaurante vegetariano, nem se falava disso sequer. O conceito começou a aparecer depois”, conta. Vivia-se um tempo diferente e comercializavam-se, por outro lado, itens que já não se escoam hoje, alguns curiosos como caixas de pregos de vários tamanhos, abanadores de fogareiros e vassouras de grandes dimensões, o que espelha as mudanças de procura entre gerações. Também se vendiam caras de bacalhau, que eram primeiro colocadas em tanques, onde ficavam em salmoura, e depois retiradas para os sacos.

A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 39 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.

Fachada do restaurante Os Tibetanos, em Lisboa

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