Antes pelo contrário

25 de abril (4): "D" de desenvolvimento, onde tudo se joga.

25 abril 2014 8:00

Daniel Oliveira

25 abril 2014 8:00

Daniel Oliveira

Era costume de Marcelo Caetano, na primeira aula que lecionava na Faculdade de Direito, fazer a chamada dos muitos alunos que enchiam o auditório. Pegava na folha de presenças e dizia o nome de cada um. E a quase todos iam fazendo comentários. Como está o paizinho? O seu tio, não o vejo há muito tempo? É neto de beltrano? Tem parentesco com fulano? Quase todos os apelidos lhe eram familiares. Porque Portugal vivia num regime de casta.

E havia o outro lado da moeda. Muitos ex-combatentes descrevem a sua passagem pela guerra colonial como o primeiro contacto com algum conforto. A primeira dormida num colchão e numa cama, duche, pelo menos duas verdadeiras refeições por dia. Um luxo a que se juntava, para muitos deles, um pré superior ao que recebiam no trabalho à jorna e na agricultura. A guerra era confortável quando comparada com a vida quotidiana.

Portugal era estes dois países que mal se conheciam. Com uma minúscula classe média no meio. Os dois países ainda existem. Mas são incomparáveis. E é por isso que num inquérito organizado pelo ICS, Gulbenkian, SIC e Expresso se mostra que os portugueses valorizam sobretudo e cada vez mais o que, depois do 25 de abril, melhorou na saúde, na educação e na habitação. A democracia era a conquista óbvia para o povo. A descolonização era evidente para os militares. E o "D", o desenvolvimento, parecia ser a promessa mais difícil de cumprir do Movimento das Forças Armadas. Mas dele dependia a sobrevivência do regime que então nascia. Sem ele, o regime democrático teria o destino que teve a I República. Por isso, o salto social que conseguimos dar foi a maior vitória do 25 de abril. Ela mede-se em números. E a valorização que os cidadãos fazem desta parte da revolução só pode espantar que não sabe que país temos e que país tínhamos. Venham os números chatos, para que tudo fique claro.

Na saúde. Em 1970 havia 94 médicos por cem mil habitantes. Vinte anos depois eram 281. Em 2012 eram 417. Os partos em estabelecimentos de saúde eram 37,5%. Apenas 15 anos depois estavam nos 97,5% e hoje são mais de 99%. A taxa de mortalidade infantil caiu dos 77,5 (bem longe dos 25,5 que existiam na Europa) para os 10,9 em mil nascimentos (semelhante aos 10,3 europeus) e em 2012 estava nos 3,4 (abaixo dos 3,9 da Europa). Talvez de forma apenas um pouco menos esmagadora do que isto, quase todos dados da saúde transportam Portugal do terceiro mundo para o primeiro em duas décadas.

Na educação. Em 1970 havia pouco mais de 15 mil crianças no ensino pré-escolar. Duas décadas depois eram mais de 161 mil. Em 2011 eram 272 mil. Em 1970 a taxa real de escolarização era de 2,4% no pré-escolar, 84,3% no 1º ciclo, 22,2% no 2º ciclo, 14,4% no terceiro ciclo e 3,8% no secundário (não sei se aqui entram as escolas industriais e comerciais, mas o número será, ainda assim, muitíssimo baixo). Em 1990 era de 41,7% no pré-escolar, 100% no 1º ciclo, 69,2% no 2º ciclo, 54% no 3º ciclo, e 28,2% no secundário. Em 2012 era 89,3% no pré-escolar, 100% no 1º ciclo, 92,3% no 2º ciclo, 89,9% no 3º ciclo e 72,3% no secundário. Em 1970 havia pouco mais de 50 mil professores. Em 1990 eram quase o triplo e o aumento nos 22 anos seguintes foi pouco significativo. Em 1970, 25,7% da população era analfabeta (quase um terço das mulheres). Em Espanha estava nos 8,5%. Em 1850, os países do norte da Europa já tinham taxas de analfabetismo próximas dos 5%. A Inglaterra já quase tinha erradicado o analfabetismo em 1950. O que Portugal tinha em 1970 deixara a Grécia de ter em 1950. O nosso analfabetismo não era um sinal do tempo, nem sequer normal num país pobre do sul. Era um sinal do nosso atraso mais profundo, que marcou muito do que ainda somos. E apenas dez anos já tínhamos reduzido o analfabetismo para 18,6%, em 1990 tinha descido para os 11% e hoje anda próximo dos 5%.

Por fim, a habitação. Não se contabilizavam as barracas nos censos de 1971. Mas sabe-se que viviam 74.603 portugueses em barracas, em 1981. Seriam bastante mais em 70. E caíram para 58.161 em 91. E, 2011 eram "apenas" 6.690. Mas vale a pena saber, para além das barracas, o que eram as condições nas casas. Os alojamentos familiares ocupados com água canalizada representavam, em 1970, 47,4% do total (em 91 tinham passado para 86,8%). Com duche ou banho eram 32,3% (81,8% em 91). Com instalações sanitárias eram 58% (88,5% em 91). Com eletricidade eram 63,8% (97,7% em 91). Com esgotos eram 60% (83,6% em 91)

Dirão que tudo isto teve um preço insuportável e que ditou o nosso atraso económico. É pura e simplesmente falso. Olhamos para a evolução do PIB per capita, do rendimento e da remuneração dos trabalhadores e percebe-se que não se cometeu nenhuma loucura. A remuneração dos empregados a preços constantes quase duplicou de 70 para 90, é verdade. Mas o PIB per capita a preços constantes mais do que duplicou. Em 1970 a remuneração do trabalho representava 56% do PIB. Deu um grande salto em 74 e 75 para depois estabilizar e, em 79, já estava abaixo de 1970. Curiosamente, em 1990 tinha caído para 45,3% e manteve-se próximo dos 50% até hoje.

Sim, houve duas intervenções do FMI, que não implicaram qualquer retrocersso na construção do Estado Social e foram bem mais rápidas do que esta intervenção promete ser (já perceberam que ela está para continuar, com outro nome?). Mas vale a pena recordar que fizemos tudo isto passando pela crise petrolífera de 79 (que abalou quase todas as economias), integrando cerca de um milhão de portugueses vindos de África e no meio de uma enorme convulsão política e económica. E, apesar de tudo isso, chegámos a 1990 com estes índices de desenvolvimento e prontos para começar a decada de maior crescimento económico do País.

Também não é verdade que este salto, que nos aproximou da Europa, se tenha feito à custa de um endividamento público insustentável. Desde a entrada na CEE até 1991, Portugal manteve uma dívida pública muito próxima (um pouco acima) da europeia. De 1991 a 2005 esteve sempre abaixo da média europeia (e durante bastante tempo, muito abaixo). A subida da nossa dívida pública começa com a integração no euro e dispara com a crise internacional de 2008/2009. Nada disto bate certo com "narrativa" de que o Estado Social que construímos nos endividou ao longo de quatro décadas. É evidente que os nossos problemas foram outros, têm muito mais a ver com a nossa estrutura produtiva e, acima de tudo, com a introdução, essa sim catastrófica e irresponsável, do euro. Temas que não cabem neste texto.

A verdade é esta: para a maioria dos portugueses, o 25 de abril não se sentiu na explosão de liberdade dos dias seguintes. Sentiu-se de forma profundíssima nos anos seguintes na sua vida concreta. Isso conseguiu-se com um aumento significativo dos seus rendimentos - que foi determinante para o desenvolvimento da nossa economia -, mas, acima de tudo, com a construção rápida dos pilares do Estado Social. Quando nos dizem que andámos a viver acima das nossas possibilidades; quando Passos Coelho comparou, num artigo que escreveu ainda antes de chegar a primeiro-ministro, o que o Estado gastava em funções sociais no início dos anos 70 e as enormes despesas que agora teríamos; quando se fala do excesso de peso das funções sociais do Estado desde o 25 de abril, é dos números de que referi nos parágrafos anteriores que se está a falar. É na verdadeira chegada de Portugal à Europa, que seria impossível sem este investimento.

A primeira pergunta que temos de fazer em relação ao caminho que trilhámos é sobre o passado: como a democracia, pelo menos para quem não a vê como uma mera formalidade, não se decreta, e é preciso que a maioria dos cidadãos tenha condições materiais e autonomia para a exercer, seria possível implantá-la com o grau de atraso em que ainda vivíamos no início dos anos 70? Mas é mais do que isto: não foram os enormes ganhos sociais que os portugueses sentiram o principal instrumento para a credibilização do processo democrático e um motor fundamental para a sua afirmação política? A outra pergunta tem a ver com o futuro e vai no mesmíssimo sentido: será possível, com a degradação das condições de vida e uma austeridade sem fim à vista, preservar a democracia? Alguém acredita que num país ainda pobre e desigual, a destruição do Estado Social não acarretará a destruição da própria democracia?

Disse, logo no primeiro texto que escrevi esta semana, que era na integração de Portugal na Europa (e na nova posição de colonizado em que nos encontramos) e no recuo a que assistimos nas conquistas sociais das últimas quatro décadas que o primeiro dos três "D" - o da democracia - se pode perder. Se não descolonizarmos Portugal e não travarmos a brutal retrocesso social a que estamos a assistir podemos preparar-nos para viver num limbo que dificilmente poderá ser democrático. E aí sim, fará sentido dizer que teremos mesmo de fazer um novo 25 de abril. A bem ou a mal. Seria excelente aproveitarmos estes 40º aniversário para pensarmos bem se um dia queremos chegar a esse ponto.

Nota: todos os números aqui referidos constam do site da Pordata.