Nas últimas quatro décadas de contrarevolução neoliberal, que um pouco por todo o mundo levaram à erosão dos direitos laborais, concentração do rendimento, instabilidade financeira e privatização de serviços públicos, um dos domínios em que a voragem foi levada a um extremo mais absurdo foi a privatização da segurança social. Em três dezenas de países, achou-se boa ideia retirar a administração e aplicação dos descontos e o pagamento de pensões da esfera pública e colocá-los nas mãos do setor financeiro privado, mantendo a obrigatoriedade dos descontos mas reduzindo ou eliminando a dimensão de redistribuição solidária em detrimento da componente de capitalização individual.
Felizmente, esta opção não se generalizou: entre 1981 e 2014, a privatização do sistema de pensões obrigatória foi levada a cabo em 14 países da América Latina, 14 países da Europa de Leste e em dois países africanos, o Gana e a Nigéria. Trinta não é pouco, mas é uma pequena minoria entre os cerca de duzentos países do planeta. Curiosamente, esta opção nunca foi adotada em nenhuma das economias mais centrais de onde o neoliberalismo emanou originalmente, como o Reino Unido ou os Estados Unidos.
Após quase quatro décadas de experimentação neste domínio, o veredito dificilmente podia ser mais claro. O rol de problemas e desvantagens deste sistema é longo e esclarecedor. Socorro-me da lista dos capítulos de um relatório da Organização Internacional do Trabalho sobre este tema, de modo a não me esquecer de nenhum: estagnação ou diminuição das taxas de cobertura; deterioração das pensões; aumento da desigualdade de rendimento e de género; pressões sobre os orçamentos dos Estados decorrentes dos custos de transição de sistema; custos administrativos elevados; captura das funções de regulação e supervisão; concentração do setor; escasso efeito de desenvolvimento dos mercados de capitais; transferência de riscos financeiros e demográficos para os indivíduos; e deterioração do diálogo social.
De tal forma se tornou óbvio que é uma má ideia colocar as pensões obrigatórias de toda uma população nas mãos do setor privado, reduzindo a proteção, aumentando a insegurança e beneficiando apenas o próprio setor financeiro, que do ano 2000 para cá dezoito (60%) destes trinta países decidiram reverter a privatização, trazendo a administração da segurança social de volta para a esfera pública. Muitos, como a Bolívia (2009), a Hungria (2010), a Polónia (2011) ou a Rússia (2012), fizeram-no na sequência da crise financeira internacional, quando se tornou especialmente evidente a insustentabilidade desta solução.
Mas não se sai facilmente da armadilha neoliberal. Os governos de dois destes países, a Argentina e a Bolívia, enfrentam atualmente processos movidos por bancos e seguradoras internacionais, que pretendem ser indemnizados pelos lucros que deixaram de ter nas décadas seguintes em resultado da reversão da privatização em 2008 e 2009. Nestes processos, o BBVA, a MetLife e a NN Insurance International pretendem indemnizações milionárias não por custos que tenham suportado, mas sim pelos lucros que deixaram de ter em todo o horizonte temporal futuro.
Se estas pretensões, que estão a ser julgadas num tribunal arbitral de investimento internacional e não nos sistemas judiciais dos próprios países, forem atendidas, isso significa que a Argentina e a Bolívia terão de pagar muitos milhões de dólares a estas empresas, vulnerabilizando os seus serviços públicos para encherem ainda mais os bolsos de investidores internacionais. Significa também, na prática, a neutralização do poder soberano dos Estados tomarem as decisões que consideram mais adequadas para o bem dos cidadãos. E significa ainda que governos que conjunturalmente estejam no poder durante um mandato podem comprometer inaceitavelmente o futuro das suas finanças públicas e dos seus sistemas de proteção social durante décadas. É precisamente por tudo isto ser inaceitável que corre atualmente uma petição, promovida por uma centena de economistas e especialistas do desenvolvimento, no sentido de apelar a que estas pretensões não sejam atendidas.
Quer isso aconteça, quer não, este caso servirá sempre de alerta. A privatização de serviços públicos essenciais não é só um problema em termos de eficiência e equidade: significa também o esvaziamento da soberania e a criação de riscos inaceitáveis de vulnerabilização dos Estados no plano judicial.
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