É sabido que existe uma relação próxima entre cultura, pensamento e linguagem. É famosa a história acerca de como as línguas Inuit, vulgarmente conhecidas como Esquimós, têm dezenas de palavras diferentes para referir a neve nas suas diversas variantes. Essa diversidade terminológica reflete os centros de interesses dessa cultura e, por sua vez, influencia o pensamento dos indivíduos que assim se expressam, uma vez que que, em cada contexto particular, estes não pensarão em “neve”, mas sim numa das suas dezenas de matizes particulares.
Esta história, tal como se vulgarizou, é algo imprecisa e exagerada, mas teve realmente origem nos trabalhos do pioneiro da antropologia Franz Boas entre os Inuit e influenciou realmente a teorização sobre estes temas segundo a linha do relativismo linguístico, que culmina na chamada hipótese Sapir-Whorf: não pensamos senão através da linguagem, e as particularidades desta determinam os nossos pensamentos e ações. Esta versão ‘forte’ da determinação do pensamento pela linguagem está hoje em dia bastante desacreditada, mas é difícil não dar algum crédito à versão ‘fraca’, mais modesta: a linguagem que usamos influencia a forma como pensamos.
Dei por mim a pensar nestas questões a propósito de um pormenor lexical que nos últimos anos tenho vindo a encontrar com cada vez mais frequência em língua inglesa, tanto nalguma comunicação social como em documentos produzidos pelo sector financeiro. Trata-se da expressão “High-Net-Worth-Individuals”, por vezes abreviada como HNWI, e que poderemos traduzir (visto que ainda não se generalizou por estes lados, creio) como “Indivíduos de Elevado Valor Líquido”. No fundo, não é mais do que uma forma mais contemporânea e críptica de designar os ricos ou os milionários, mas é interessante determo-nos para analisarmos este conceito, que aliás está associado à prática, em língua inglesa, de utilizar a expressão “to be worth” (valer) para designar o património detido por alguém. Por exemplo, como na frase “Bezos is now worth $140 billion, while Zuckerberg is worth $70 billion”, traduzível por “Bezos vale agora 140 mil milhões de dólares, enquanto Zuckerberg vale 70 mil milhões de dólares” (ênfase meu), retirada deste artigo.
Num pequeno livro notável intitulado Capitalisme, désir et servitude (disponível em inglês como Willing Slaves of Capital), Frédéric Lordon discute, entre outras coisas, a natureza do dinheiro como objeto de desejo. Nas suas palavras, “o dinheiro é a expressão subjetiva, sob a forma de desejo, da relação social monetária. (...) [Da perspetiva dos indivíduos, o dinheiro] transforma-se num objeto de desejo, ou de meta-desejo, uma vez que este objeto particular é o equivalente geral que dá acesso a todos os objetos (materiais) de desejo (...), produzindo um dos atratores mais poderosos de uma economia do desejo estruturada pela mercadoria”. Esta análise, apesar de se referir a questões que reconhecemos intuitivamente, é mais profunda do que poderá parecer à primeira vista: é na medida em que vivemos numa sociedade em que a satisfação de uma parte maioritária e crescente dos desejos é mediada por relações mercantis que o dinheiro se afirma com força crescente como objeto de meta-desejo. A glorificação do dinheiro como signo representativo da satisfação de todos os desejos é por isso tanto mais forte quanto mais total for o domínio da lógica da mercadorização em cada sociedade.
A expressão “High-Net-Worth-Individuals” e frases como “Bezos is worth $140 billion” condensam assim dois deslizamentos semânticos significativos: por um lado, a redução do valor dos indivíduos ao património que detêm; por outro, a conversão ou expressão do património à forma particular do seu equivalente monetário. Operando em conjunto, estas duas reduções convertem o valor do humano e dos humanos numa métrica dos desejos que, numa sociedade plenamente mercadorizada, cada indivíduo se permite a si próprio, ou a terceiros, aceder. O património individual converte-se em valor individual e especificamente em valor individual perante e para os outros, pois representa, significa, o feixe de desejos a cuja concretização potencial esse indivíduo está associado.
Julgo que estes desenvolvimentos lexicais dificilmente poderiam ter sido introduzidos noutro contexto que não o capitalismo neoliberal contemporâneo na sua variedade anglo-americana, pois de alguma forma condensam sob a forma de linguagem relações sociais tipicamente contemporâneas que encontram a sua expressão mais perfeita nos centros do sistema-mundo capitalista. Ao mesmo tempo, regressando ao ponto inicial, estes desenvolvimentos linguísticos não deixam de infuenciar as formas de pensar, designadamente sobre o valor individual e a organização do desejo.
Na nossa cultura, isto gera ainda alguma estranheza. Mesmo nos meios mais recetivos a estas formas de pensar, não se deu ainda o salto de “Bezos tem” para “Bezos vale”, nem se pergunta descontraidamente quanto vale aquele ou aqueloutro indivíduo. Porém, da mesma forma que todos os diretores-gerais têm vindo a passar a CEOs, parece-me que a tendência é para que também estas mudanças nas formas de falar e pensar cheguem a seu tempo às semi-periferias como a nossa para também aqui exercerem o seu encantamento.
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