14 fevereiro 2011 18:48
14 fevereiro 2011 18:48
O dia de São Valentim, que hoje se celebra, é um dia de amor universal. De amor das floristas que nos querem impingir amores-perfeitos; de bem-querer dos restauradores que nos querem pespegar, entre outras delícias de "sexy-food", linguadinhos à Valentim; de afecto das ourivesarias que tencionam fazer palpitar um coração de ouro ou prata, bem pago, no peito da nossa cara-metade; dos comerciantes e dos centros comerciais que planearam aguçar-nos mais ainda, por amor à próxima, desfastios consumistas; de dilecção dos hoteleiros, sequiosos por nos fazerem transpirar de amor em quartos guardados por cupidos de celofane; e até da excitação das companhias aéreas que, também, nos querem obrigar, quase de borla, a trepidações extáticas numa capital romântica da Europa.
Valentim, em cinza há mais de 1700 anos, não desconfia nada destas promoções que levam o seu nome de santo. Valentim é, dos três canonizados da Igreja com o mesmo nome, o mais notório. No ano de 271 perdeu, mesmo, a cabeça. O imperador romano Cláudio II mandou decapitá-lo. O martírio aconteceu a 14 de Fevereiro. Valentim teimara em celebrar casamentos, em segredo, desafiando a proibição do imperador carente de solteirões para a guerra.
Engaiolado, Valentim recebeu a filha do carcereiro, a bela Asterias. Asterias não via nada. Era invisual. Apaixonou-se por Valentim. Daqui a sabedora constatação, para o fim dos tempos, de que o amor continua cego depois de o ser.
Valentim devolveu a visão a Asterias. O milagre deu-se. Mas, como não há milagres perfeitos, Valentim ficou cego de amor por Asterias. Na situação de clausura em que se encontrava Valentim, não teve possibilidade de estimular, na sua apaixonada, uns gritinhos astéricos, próprios de amor carnal pecaminoso, mas impróprios de bispo. Umas simples cartinhas platónicas devem ter ajudado à glorificação do santo.
Até há uma dúzia de anos ninguém, em Portugal, se lembrava de São Valentim. Nos países anglo-saxónicos havia uma tradição, não muito antiga, de evocar o patrono dos namorados, enviando cartas e presentes às vítimas amorosas mais benquistas. É claro que, parafraseando o nosso sempre ostensivamente apaixonado presidente da República, não há presentes de borla. E neste dia, nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, o negócio do presente nunca deixa de estar presente. Em Portugal a santa mercancia vai ganhando adeptos.Nunca vi, como este ano, tanto amor na sociedade portuguesa. Não há estabelecimento comercial em todo o país que não ostente enormes e rúbidos corações, acenando ao amor. O amor à compra de qualquer artefacto para ofertar. O amor de conveniência.
É um dia de salvação nacional. Não há empresário angustiado que não pense que o dia de São Valentim não deixará de salvá-lo de caixas de miséria, de salários em atraso, de bancarrota iminente. O santo, supõe-se, que interceda para serenar agonias prenunciadas.
Não acredito no sucesso destas diligências. Valentim, tantos séculos depois, continua um sacrossanto empedernido. Este ano, ainda por cima, o calendário não ajuda. O Dia dos Namorados tomba numa Segunda-feira. O Senhor, como vem nas escrituras, destinou-nos o início de semana para curar as beatíficas ressacas de fins-de-semana excessivos.Eu, por mim, ficarei a meditar no exemplo de Valentim. Tentarei permanecer insensível ao declarado amor do empresário próximo. Tentarei não apadrinhar conúbios inférteis e potencialmente perigosos para a existência. Darei tudo por tudo para não perder a cabeça. Ficarei em casa.