O Vento nas Velas

HARA KIRI - honra ou pecado?

12 julho 2010 15:37

João Paulo Oliveira e Costa

Pormenor de Armadura de Samurai

"Entre nós se tem por pecado gravíssimo matar-se um a si mesmo; os japões na guerra, quando não podem mais, cortar a barriga é grande valentia".

12 julho 2010 15:37

João Paulo Oliveira e Costa

Já falámos aqui de Luís Fróis.

Jesuíta nascido em Lisboa, viveu mais de 30 anos no Japão, cinco dos quais na zona da actual Kyoto, sem ver nenhum outro europeu. Espírito aberto, Fróis aproveitou a oportunidade extraordinária que a vida lhe concedeu e não se barricou nos preconceitos da sua própria civilização, nem sequer se deixou tolher totalmente pelos dogmas da religião em que cria profundamente e que propagava entre os nipónicos.

Missionário bem sucedido, foi o autor de uma obra extraordinária, já citada neste blogue e à qual voltaremos regularmente. Refiro-me ao Tratado das Diferenças, escrito em 1585, mas só dado à estampa em 1955. Nessa pequena obra, o jesuíta elencou mais de 600 comportamentos em que europeus e japoneses tinham hábitos totalmente opostos; ao contrário da maioria dos seus contemporâneos (e provavelmente dos homens e mulheres de hoje, de qualquer civilização) Fróis não tomou partido. O seu espírito percepcionou que essas diferenças não eram sinónimo nem de inferioridade nem de superioridade de uns ou de outros. Como ele próprio reconhecia no título, "parece incrível" como hábitos tão distintos eram afinal expressões de duas civilizações igualmente refinadas e polidas. Quantos de nós olhamos ainda hoje com desdém ou desconfiança para hábitos da aldeia vizinha, da cidade mais próxima, e acima de tudo dos estrangeiros?

Além disso, Luís Fróis era um missionário - um propagador de uma religião que se entende como a verdade absoluta, e que na época era entendida como um sinal da superioridade europeia. Indiferente a todos os preconceitos, o jesuíta escreveu no seu Tratado: "Entre nós se tem por pecado gravíssimo matar-se um a si mesmo; os japões na guerra, quando não podem mais, cortar a barriga é grande valentia". Voltando a pegar no título da obra, o que Fróis nos diz nesta passagem, de uma forma neutra, sem tomar partido, é que "incrivelmente" (aos olhos de um europeu) o pecado era relativo e não absoluto - no Japão o harakiri (acto pelo qual, em regra, um guerreiro derrotado assegurava que a sua família e os seus bens seriam respeitados), embora fosse um suicídio era uma honra. Trata-se, obviamente, de um assunto complexo, que gerou largas discussões no século XVI entre os missionários do Japão e os teólogos da Igreja. Também hoje poderemos discutir longamente o assunto.

Registemos, porém, que, em 1585, o espírito aberto de um missionário português respeitou a lógica da sociedade que queria seduzir para a Fé cristã - não se limitou a reagir perante um acto concreto, fácil de classificar, mas tentou antes compreendê-lo no seu enquadramento próprio e no conjunto das suas consequências. E com isto não defendeu que os samurais cristãos tinham legitimidade para cometer o harakiri; simplesmente não condenou.

Vale a pena notar que só muito recentemente a Igreja aceitou conceder funeral religioso a um suicida para se compreender a importância do testemunho de Fróis, o primeiro japonólogo europeu.





Coordenação



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Assistência Tecnica



Inês Pinto Coelho e Margarida Paes



Colaboradores



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