O modo do tempo

Sentido

30 abril 2013 9:00

30 abril 2013 9:00

Vim do quarto até à sala de estar e não sei o que vim cá fazer. Há muitas vezes que me surpreendo nos sítios sem saber o que lá fui fazer. Mas pode ser que esteja à procura de qualquer coisa de que precise. Não me lembro do quê. Não sei o quê de concreto que lá fui buscar, de que precisava, que me fez levantar da cadeira, ir pelo corredor até à sala de estar. Não saber desmobiliza o sentido do que lá fui fazer e estou na sala sem saber a fazer o quê, regresso pelo corredor até onde estava. Ah! Era a carteira.

Vou ter com alguém que não aparece. Que fui lá fazer? Por que me dei ao trabalho? Atravessei a cidade com o encontro em mente, ia vê-la a ela e não outra, àquelas horas, naquele sítio. O sentido do ver alguém faz-me vestir, sair de casa, percorrer a cidade, esperar por que venha. Quando é que sabemos que alguém não vem? É depois de cinco minutos, quinze minutos, uma hora? É qualitativo. A partir de determinada altura vamos embora, porque estipulamos um tempo. A partir desse tempo decidimos que alguém não virá ao nosso encontro e desmobilizamo-nos. Desfaz-se o sentido do que estávamos ali a fazer e o que fizemos para lá ir ter. Que fui eu lá fazer?

Quando digo: estou na faculdade não estou a referir-me ao sentido geográfico ou geométrico do estar dentro de..., ou do estar em... ou do lugar onde estou, da toponímia. Digo muito mais, para quem sabe o que é para mim ter ido até e estar na faculdade. Se alguém que está a consertar o elevador e diz ao interlocutor do TM que está na faculdade, não faz sentido. O técnico terá que especificar que está naquela faculdade específica a consertar o elevador, está a trabalhar no seu mêtier; não está na faculdade a dar ou a receber aulas, etc., etc..

Se eu digo estou na sala T8 isso não refere apenas o facto de que eu estou a não sei quantos andares do Rés do Chão, na torre X da faculdade Y. Eu digo-o porque alguém me pergunta onde é a aula ou onde poderá vir ao meu encontro. Mas pode suceder que haja um assassino à solta no campus e eu estou a falar com a polícia. Que digo em voz baixa e assustado: estou na sala T8 e peço por socorro, para salvar a vida. Estar e estar são coisas bem diferentes. Ao revelar a minha localização, tudo depende de um sentido e de um contexto bem mais concreto e fundo do que a mera localização geográfica ou topográfica ou geométrica. É o que eu estou lá a fazer.

E quando pergunto "que vim cá fazer?"? O que exprime o advérbio de lugar "cá"? Não é o onde específico de nenhum sítio. É o sítio dos sítios, o mundo? O mundo é a vida? Eu sou portador de vida no mundo? Porque conjugo a primeira pessoa do pretérito perfeito do indicativo, na voz activa do verbo "vir"? Eu não me desloquei de nenhum lado específico para a vida no seu todo. Fui trazido, por isso, não me refiro a nada de concreto. Ou será o que há de mais concreto? É o que referimos quando dizemos: "vamos indo". Ir é uma forma de existir. A forma da existência é a do viajar. Não é a do deslocar-se. E o que significa "fazer"? O objecto é a vida: fazer vida. Mas não só. Fundamentalmente é o sentido da vida que é determinado pelo fazer.

A pergunta o que vim cá fazer pergunta pelo sentido, na circunstância fundamental em que pode haver vida sem se fazer sentido e pode fazer-se nenhum sentido da vida. Não ter vindo cá fazer nada. Ter vindo, mas não ter ido.