Amnistia Internacional

Somos da Maré: a ocupação militar das favelas às portas do Mundial do Brasil

10 abril 2014 17:52

Atila Roque, diretor-executivo da Amnistia Internacional Brasil

O director-executivo da Amnistia Internacional Brasil descreve as preocupações dos moradores do enorme complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, depois da ocupação por forças militares para "pacificarem" a região, imersa em crime organizado e tráfico de drogas, antes e durante o Campeonato do Mundo de Futebol

10 abril 2014 17:52

Atila Roque, diretor-executivo da Amnistia Internacional Brasil

Às primeiras horas de sábado passado, 5 de abril, as ruas do complexo de favelas da Maré, no rio de Janeiro, amanheceram ocupadas por 2.700 soldados das tropas federais sob comando do Exército, os quais substituíram o contingente de polícia militar que patrulhava a zona desde os finais de março.

As autoridades anunciaram que aquelas forças militares vão permanecer na Maré pelo menos até 31 de julho, após a realização do Campeonato do Mundo de Futebol. Quando saírem será então instalada no complexo de favelas uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP).

O complexo da Maré conta com cerca de 132 mil habitantes, distribuídos por 16 comunidades, num conjunto de favelas que se localiza entre as principais vias de acesso ao Rio de Janeiro e nas proximidades do aeroporto internacional. Forma uma comunidade muito diversa, com um histórico de organização comunitária, acesso precário ais serviços públicos e uma convivência diária com grupos de crime organizado e milícias armadas formadas por antigos polícias.

A relação da polícia com os habitantes da maré tem sido marcada por abusos e violência, em resultado da política de "guerra" ao crime organizado e ao tráfico de droga no complexo que afetam de forma extremamente nociva toda a comunidade e, principalmente, os jovens negros. Os moradores da Maré estão preocupados com estas mudanças nas forças de segurança no terreno, apesar da perspetiva de com isso se livrarem da "autoridade" de facto dos traficantes de droga e da esperança de que assim os serviços públicos passem a estar-lhes mais acessíveis e próximos no complexo de favelas.

Para a Amnistia Internacional Brasil, a presença do Exército na Maré é simultaneamente uma questão delicada e uma oportunidade para o Estado demonstrar que a segurança pública é um direito que tem de ser garantido e exercido por todos os residentes do Rio de Janeiro sem exceções. As zonas de favelas e as periferias não podem ser tratadas como "território inimigo" que tem de ser conquistado, e o combate à criminalidade não pode conduzir à criminalização de toda a comunidade - em particular dos jovens.

Com a aproximação do Mundial de Futebol, há um crescente receio de que este modelo de intervenção do Exército e de outras forças armadas nas favelas se expanda, com os inerentes riscos de violações dos direitos humanos e de uma militarização do quotidiano das comunidades mais pobres. As forças militares brasileiras não possuem, de resto, treino adequado para este tipo de operação de vigilância e segurança de favelas, nem tão-pouco experiência de diálogo com organizações da sociedade civil e comunidades.

Aliás, as últimas intervenções das forças federais militares no Rio de Janeiro, em conjunto com órgãos estaduais de segurança pública, resultaram em casos de muito graves violações de direitos.

Em junho de 2007, a operação lançada no Complexo do Alemão com o apoio da Força Nacional causou 19 mortos civis nos confrontos com as forças de segurança - algumas dessas mortas com indícios de execuções sumárias e arbitrárias, de acordo com um parecer apresentado por peritos independentes.

E em junho de 2008, tropas do Exército que vigiavam um projeto de segurança federal no Morro da Providência foram responsáveis pelas mortes de três jovens, assassinados depois de os militares os terem entregado a um grupo criminoso.

A campanha "Somos da Maré e Temos Direitos"

A Amnistia Internacional Brasil mantém uma relação próxima com as comunidades do complexo da Maré desde 2012, quando lançamos a campanha "Somos da Maré e Temos Direitos" em parceria com as organizações não-governamentais locais Rede de Desenvolvimento da Maré e Observatório de Favelas.

O objetivo desta campanha é informar os moradores do complexo de favelas dos seus direitos e prevenir eventuais abusos e ações desrespeitosas por parte das forças policiais, especialmente nos momentos de abordagem das pessoas nas ruas ou nas suas casas - para isso foram distribuídos materiais educativos diretamente em mais de 35 mil casas na Maré, em preparação destas comunidades para a chegada das unidades policiais UPP ao complexo depois do fim do Mundial de Futebol.

Há uma semana, a 3 de abril, apresentámos ao secretário estadual de Segurança do Rio de janeiro as preocupações e reivindicações dos moradores da Maré em relação à ocupação da zona pelas tropas federais. Presente nessa reunião, o representante da Associação de Moradores do Morro do Timbau (uma das favelas da Maré) Oscar Camelo avançou que a comunidade quer participar ativamente no processo e frisou a necessidade de se estabelecer uma relação de confiança entre os habitantes e as forças de segurança. "A abordagem policial agressiva e violadora de direitos tem de mudar", sustentou.

Os diretores das organizações não-governamentais que atuam na Maré defenderam unanimemente naquela reunião que o Estado deve dar aval a mecanismos locais de controlo e mediação de conflitos, como uma provedoria comunitária.

Desta forma será possível assegurar que o domínio violento da comunidade feito pelo crime organizado não é simplesmente substituído pelo domínio - também violento - exercido pela polícia.

Outra reivindicação destas organizações é que o Estado esteja efetivamente presente no complexo de favelas não apenas com os contingentes policiais e militares, mas garanta também acesso a serviços essenciais e o exercício dos direitos fundamentais a todos os cidadãos.

A Amnistia Internacional Brasil vai continuar a trabalhar junto com os parceiros locais na Maré e demais organizações de direitos humanos, para assegurar que a entrada das forças de segurança - militares e policiais - no complexo de favelas seja um marco na garantia do exercício dos direitos humanos daquela população e não apenas mais um capítulo violento na história das comunidades.

 

Aqui, o vídeo da campanha "Somos da Maré e Temos Direitos", a ver: https://www.youtube.com/watch?v=VTblgeL6U4w