27 fevereiro 2014 11:51
Zorian Kis passou a noite de 19 de fevereiro na Praça da Independência, em Kiev, na Ucrânia, bem no auge dos protestos da Maidan, e assistiu aos confrontos que ali eclodiram e acabaram por provocar a morte de pelo menos 70 manifestantes e 20 polícias. Este é o seu relato dos dias mais negros na história recente desta ex-república soviética.
27 fevereiro 2014 11:51
As manifestações Euromaidan [pró-Europa] na Ucrânia começaram há três meses. Nunca tinha assistido a um tão grande desprezo pelos direitos humanos e pela dignidade humana no meu país. Nunca tinha visto uma tão grande incapacidade do Governo em ouvir o que o povo lhe dizia, nem uma tão grande coragem por parte de gente comum em defenderem os seus direitos.
Pelo final do ano passado, quando estávamos a lançar na Amnistia Internacional Ucrânia a nossa primeira petição contra a brutalidade policial e a impunidade inerente, não podíamos nem sequer imaginar a extensão dos abusos cometidos pelos agentes das forças de segurança que iriamos testemunhar em janeiro e fevereiro de 2014.
Quando os confrontos violentos com a polícia eclodiram de novo a 19 de fevereiro, tivemos de encerrar os nossos escritórios em Kiev dado os riscos de segurança. Passei essa noite na Maidan - a praça central da capital [Praça da Independência, Maidan em ucraniano] e epicentro dos protestos -, a mesma noite em que a polícia se mobilizou para uma terceira tentativa para "limpar" a área dos acampamentos dos manifestantes.
Horas mais cedo nesse dia, mais de 30 manifestantes tinham sido mortos a tiro na zona central de Kiev. A polícia estava a usar munições reais, as novas granadas russas de atordoamento, gás lacrimogéneo, balas de borracha, três canhões de água e dois camiões blindados de tropas contra os manifestantes. Aquilo parecia uma guerra a sério.
Conforme a polícia avançava pela praça dentro e removia as barricadas erguidas pelos manifestantes, estes construíam uma parede de chamas em volta de si mesmos, queimando pneus e qualquer outra coisa que ardesse, até as roupas que tinham vestidas.
Estavam umas cinco mil pessoas na praça e cada uma delas tinham uma tarefa a desempenhar. Alguns formavam correntes para fazer chegar pedras e pneus à linha da frente, onde jovens arriscavam a vida para salvar as nossas. Vi milhares de pessoas, determinadas, dignas e corajosas: estudantes, reformados, hipsters, gente que fala ucraniano e gente que fala russo, professores e mineiros, vindos de todos os lados do país. E senti-me tão orgulhoso deles!
Estava perto do palco principal, quando fui alvejado numa perna por uma bala de borracha. Como fora disparada de muito longe não fiquei seriamente ferido e a dor passou ao fim de alguns minutos. Quando fui atingido e gritei, as pessoas em meu redor acudiram para me ajudar. Nem um mostrou medo. Depois disse-lhes que estava bem e rimos todos juntos. Um par de minutos passados, um dos líderes da oposição, que estava a falar no palco principal, foi também atingido por uma bala de borracha. Quem quer que estava a disparar fez mira à cara dele.
No dia seguinte, 20 de fevereiro, a violência irrompeu de novo na Praça da Independência. Durante esses novos confrontos morreram mais de 60 pessoas, alegadamente alvejadas a tiro por atiradores furtivos. Os manifestantes reconquistaram o terreno perdido na véspera e as forças da polícia foram empurradas para fora da praça.
A nossa equipa da Amnistia Internacional Ucrânia decidiu doar sangue, face ao número elevado de feridos. Contactámos cinco locais diferentes, mas já estavam todos cheios de pessoas a fazer doações de sangue e eles não tinham capacidade para receber tanto. Puseram os nossos nomes nas listas para receber doações no dia seguinte.
O metropolitano tinha sido fechado a 19 de fevereiro. Muitas pessoas tinham abandonado a cidade ou decidido ficar em casa. Porém, a vaga de gente que acorria à Maidan crescia constantemente, com autocarros e carros a chegarem a Kiev de todas as partes do país, a tentarem contornar os postos de controlo da polícia e alcançarem a praça. Encontrei pessoas que tinham vindo de Jitomir, a pé, pelos bosques, umas três horas de caminhada até à capital.
A maior parte daqueles que foram mortos na Maidan foram alvejados no pescoço. Conversei com um médico e ele explicou-me que aquelas pessoas não tiveram hipóteses nenhumas de sobrevivência: os tiros tinham sido claramente feitos por profissionais e com a intenção de matar.
Dezenas de corpos foram alinhados na Praça da Independência e em frente ao edifício da administração da cidade. Vi homens a chorar e a rezar junto aos cadáveres dos amigos. Revi as listas com os nomes dos mortos na esperança de não encontrar ali ninguém que eu conhecesse. Não encontrei. Mas muitos não tiveram a mesma sorte.
Mais sobre os confrontos na Maidan, em Kiev:
Ucrânia mergulha num inferno de violência profundamente alarmante - Notícia, 19 de fevereiro de 2014