Amnistia Internacional

Já não há justiça nenhuma no Egito

30 abril 2014 18:22

Mohamed ElMessiry, investigador da Amnistia Internacional

Mohamed ElMessiry esteve no tribunal de El Minya quando esta semana mais de mil pessoas sentiram na pele como o sistema judicial no Egito se tornou numa anedota de justiça, com a confirmação e recomendação de centenas de penas de morte e outras centenas de prisão perpétua numa única audiência

30 abril 2014 18:22

Mohamed ElMessiry, investigador da Amnistia Internacional

"Seja bem-vindo à vila das penas de morte", disse-me o advogado Ahmed Shabeeb quando cheguei a Mattay no início desta semana. Fui lá para me encontrar com familiares de algumas das 528 pessoas que iriam ter nessa segunda-feira, 28 de abril, a audiência de confirmação das suas sentenças - em que se incluíam numerosas penas de morte - por alegado envolvimento na violência política a que se assistiu no Egito em 2013.

Ahmed Shabeed mostrou-me a rua onde fica o seu escritório e disse-me que estavam lá instaladas pelo menos oito pessoas das famílias de alguns dos 528 arguidos. Não há uma única rua em toda a vila onde não se encontrem familiares daqueles que estavam a ser julgados, avançou.

O advogado descreveu-me o julgamento do irmão, médico no Hospital de Mattay, como "uma total anedota". As forças de segurança detiveram-no pouco após a meia-noite de 28 de agosto do ano passado. Ahmed só soube que o irmão estava detido na esquadra de polícia da vila no dia seguinte. Quando ali acorreu descobriu que o irmão fora acusado de violar o recolher obrigatório. Ao sabê-lo sentiu-se mais aliviado: afinal, tratava-se de uma ofensa menor e, de qualquer forma, os médicos estavam isentos de cumprir o recolher obrigatório devido à natureza do seu trabalho.

Ahmed representou o irmão durante o interrogatório feito pelo procurador, o qual acabou por dar ordem para o libertarem. Mas a polícia não deixou o irmão de Ahmed sair da esquadra. Em vez disso, formalizaram uma nova acusação contra ele: não ter assistido clinicamente o chefe da esquadra de polícia de Mattay no hospital a 14 de agosto. Sendo um médico de clínica geral, o irmão de Ahmed não podia ter tratado o chefe da polícia, que deu entrada no hospital a precisar de uma cirurgia urgente. O irmão de Ahmed explicou que não havia cirurgiões no hospital naquele dia - tinham fugido todos depois de as forças de segurança egípcias não terem conseguido manter o local protegido da multidão enfurecida no exterior.

O procurador voltou a ordenar à polícia que o irmão de Ahmed fosse libertado. E, uma vez mais, as forças de segurança recusaram-se a deixá-lo sair. De novo, visaram-no com uma nova acusação: desta vez, que informara a multidão de que o chefe da esquadra de Mattay tinha sobrevivido aos ferimentos e que as pessoas em fúria invadiram então o hospital e o mataram.

O irmão de Ahmed ficou detido 70 dias, até que finalmente o libertaram e abandonou o Egito. Ahmed riu-se de todo o ridículo da situação. "Como é que uma pessoa pode ser acusada de envolvimento num homicídio e depois ser libertada e ser-lhe permitido sair do país?", questionou.

Detenções arbitrárias e muito longe de casa

No escritório de Ahmed conheci a família de um outro dos 528 arguidos. Estavam furiosos com as sentenças de morte que lhes tinham sido pronunciadas pelo tribunal. Tentei explicar-lhes o trabalho que é feito pela Amnistia Internacional. Aí responderam-me: "Não queremos falar. Não vai mudar nada. Na nossa rua há pelo menos dez pessoas entre os 528. O que é que nós podemos fazer? O que é que você pode fazer? Já não há justiça nenhuma neste país. Não confiamos em mais ninguém a não ser em Deus".

Têm um primo detido na Prisão de Al Wadi Al Gadid, a oito horas de distância de carro de Mattay. Para o verem têm de partir ainda à noite, de forma a conseguirem chegar ao destino de manhã, e só lhes permitem vê-lo durante três minutos. "Quem é que vai pagar as despesas dos familiares dos que foram detidos arbitrariamente?", perguntam.

Advogado condenado a prisão perpétua

Conheci também os pais de Ahmed Eid, um advogado que está entre os 528. O pai conduziu-me ao primeiro andar da casa onde a família vive, onde me apresentou à mulher e aos filhos de Ahmed: ela estava profundamente deprimida e com os olhos cheios de lágrimas. Depois, mostrou-me os documentos do processo judicial e explicou-me que Ahmed Eid representava 66 das pessoas acusadas nos ataques à esquadra de polícia de Mattay a 14 de agosto. Mostrou-me todos os documentos submetidos pelos procuradores no caso, em que Ahmed acompanhou as investigações como advogado dos arguidos. Ahmed não fazia ideia nenhuma que fazia parte do grupo de acusados.

A mulher de Ahmed contou-me que a 22 de janeiro passado, agentes da polícia à paisana entraram-lhe em casa e fizeram buscas, enquanto o marido estava fora. Levaram o computador das crianças pensando que pertencia ao marido. Dois dias depois, o advogado recebeu um telefonema da esquadra, chamando-o para conversar sobre uma questão relacionada com o processo. Assim que chegou à esquadra foi detido no âmbito do caso que foi enviado para julgamento a 25 de janeiro. Ahmed Eid ficou em detenção até à confirmação da sentença de prisão perpétua. Durante todo este tempo não foi interrogado uma única vez pelos procuradores nem pelo tribunal.

Desdém pela justiça

Na segunda-feira pela manhã dirigi-me ao complexo do tribunal de El Minya, que estava rodeado por uma forte presença policial e militar. Não era permitida a entrada a jornalistas nem a familiares dos arguidos.

No exterior encontrei as famílias dos mais de 1.200 acusados nos dois processos, relacionados com os ataques às esquadras de Mattay e de Adwa e as mortes de dois polícias durante os distúrbios violentos que se seguiram à deposição do Presidente Mohamed Morsi. Pude entrar no tribunal e já lá dentro encontrei Ahmed Shabeeb, o qual preferiu não me acompanhar até à sala de audiências, explicando-me que estava muito nervoso e assustado e que não era capaz de ouvir a leitura de confirmação da sentença.

Na sala, a zona dos arguidos estava vazia. Nem um só fora trazido à audiência. O aparato de segurança era enorme, com agentes encapuçados e armados com metralhadoras de pé atrás do juiz.

O magistrado começou a ler a sentença. Depois de ter sido ouvido o grande mufti (o mais alto representante islâmico junto do Estado egípcio) sobre as recomendações de sentença de morte que tinham sido feitas a 24 de março, o juiz declarou que se confirmava a pena capital para 37 dos 528 arguidos. E leu os nomes deles. Os restantes receberam penas de prisão perpétua.

Ao princípio o juiz parecia calmo. Mas aos poucos, conforme avançava na leitura da sentença, foi aumentando o tom de voz até estar a gritar. Ninguém conseguiu explicar-me porque é que o fez.

Depois de ler toda a pronúncia de sentença, e numa reviravolta extraordinária, o juiz instou o procurador a recorrer dos vereditos daqueles que tinham sido condenados a pena perpétua e requerer de novo a aplicação da pena capital.

Mais sentenças de morte na calha

O mesmo juiz, ali naquele mesmo tribunal, e naquela mesma ocasião, começou então a ler a sentença recomendada aos 683 arguidos visados no segundo processo, respeitante às alegações de violência cometida contra a polícia de Adwa. Também estes não estiveram presentes na audiência em que foi anunciada a sentença recomendada.

O tribunal sustentou que todos deviam receber a pena de morte, recomendação que foi entregue ao grande mufti, o qual tem sempre de ser ouvido pelos juízes em casos de pronúncia de pena capital no Egito. E quanto aos advogados dos arguidos que não compareceram à audiência anterior do caso de Adwa, a 25 de março, o juiz decretou que sejam julgados por uma comissão disciplinar e multados em 50 libras egípcias (cerca de cinco euros) cada um. Os defensores tinham recusado estar em tribunal daquela vez em protesto contra o facto de o juiz encarregue do caso ser o mesmo que um dia antes tinha recomendado a pena de morte no processo dos 528 arguidos de Mattay.

Saí do tribunal e no exterior encontrei os familiares dos arguidos, a chorar e aos gritos, pedindo justiça. Uma mulher desmaiou e caiu ao chão. Outros apelavam pela ajuda de Deus, por entre as lágrimas.

Algumas destas pessoas contaram-me que toda a vila estava em fúria devido à decisão do tribunal e que também em todas as ruas de Adwa havia famílias afetadas. "Este julgamento é nulo. Não temos ninguém mais a não ser Deus. Já não confiamos no Governo", disse-me um familiar à porta do tribunal, explicando-me ainda que o irmão e quatro primos estão no grupo de 683 arguidos aos quais o tribunal emitiu a recomendação de pena capital. Este homem contou-me que pagara uma fiança de 5.250 libras egípcias (cerca de 540 euros) para o irmão ser libertado da prisão, mas tal nunca foi feito.

A mãe de um dos arguidos denunciou ter sido agredida numa das ocasiões em que tentou visitar o filho na prisão. "Não temos mais ninguém a não ser Deus", disse-me ela, repetindo a frase que mais se ouvia no exterior do tribunal de El Minya.

As decisões judiciais emitidas esta segunda-feira no Egito espelham quão arbitrária e seletiva se tornou o sistema de justiça criminal no país. O tribunal de El Minya mostrou um desprezo total pelos princípios mais básicos de julgamento justo e destruiu por completo a sua própria credibilidade. É chegadaa hora de as autoridades egípcias assumirem estes factos e reconhecerem que o atual sistema não é justo, nem independente nem imparcial.