A agenda de Mário Claúdio

O Desaparecido

12 dezembro 2012 22:50

Mário Cláudio

12 dezembro 2012 22:50

Mário Cláudio

Um dos grandes mistérios da democracia consiste no instantâneo desaparecimento, logo que apeadas do poder, das figuras que desempenharam funções governativas, e que, punidas pelo voto, ou dispensadas de obrigações, iniciam um percurso indetectável. Quando não devoradas por novos cargos, ou devorando estes, o roteiro que empreendem abre-se à mais descabelada das imaginações. É possível por isso concebê-las no cumprimento de um destino de clandestinidade, ou de uma estratégia de evasão, ora em consequência do receio de que as penalizem pela forma como geriram os negócios públicos, ora por terem enveredado pelo caminho de busca espiritual que as depure do remorso que as aflige.

Se tais personagens se apresentaram às massas como agentes da Providência, o que por norma acontece, mais se estranha a sua repentina queda no anonimato, ou o eclipse imprevisível em que se precipitam. José Sócrates ilustra de modo cabal este fenómeno, consagrado entre nós pela história recente. Fica ele na verdade como exemplo de semelhante fatalismo, concluída a fase em que se nos propunha como um faz-tudo exaltado pela sua missão, e mais tarde como um trânsfuga acossado pelo pânico de que lhe pedissem contas.

Sabendo como sabemos que terá emigrado Sócrates para Paris, teoricamente com vista a frequentar na Sorbonne um serôdio curso de filosofia, torna-se natural que o fantasiem os cínicos como um nababo, a empanturrar-se no Ritz, ou no George V, de quanto primor gastronómico sai da cozinha dos discípulos de Vatel. E quanto aos puros, incapazes de encontrar maldade no mundo, não surpreenderá que o vislumbrem nos andrajos de um clochard triste, dormindo à la belle étoile, ou sob uma ponte do Sena.

Talvez exausto da própria imagem, de resto logo substituída por outra que prosseguirá idêntica sina, José Sócrates volatilizou-se perante o olhar português. A implacabilidade de qualquer sistema político, isto por muito que aspire à perfeição, dita tragédias assim, escassamente diversas das que Shakespeare congeminou. Não representará Lear de facto condição equiparável à do nosso ex-primeiro ministro? E não poderá declamar este como o velho rei, hoje que o iluminam as especulativas luzes da Universidade egrégia, "E tu, trovão que tudo abalas, aplaina a espessa rotundidade do mundo, e quebra e destrói de uma vez para sempre todos os moldes e germes da ingrata raça do homem"?