A agenda de Mário Claúdio

Idade e Leitura

21 novembro 2012 22:39

Mário Cláudio

21 novembro 2012 22:39

Mário Cláudio

O adolescente da longínqua década de cinquenta que tiver lido A 25ª Hora, de Virgil Gheorghiu, obra que na época suscitava enorme êxito internacional, e que não se haja sentido vacinado contra outras experiências ficcionais, constituirá um cidadão de escassa humanidade, ou uma pessoa capaz de superar os seus temores. Primeiro romance do mundo que me chegou às mãos, amaciado já pelos bucólicos afagos de Júlio Dinis, iria transformar-me no leitor incessante que teima em cumprir aquilo que, revelando-se irreprimível pulsão, não deixa de igualmente conformar, e talvez por isso mesmo, encargo a que apenas se subtrai com um vago peso de culpa. Naquelas páginas narrava-se-me o horror dos campos de extermínio nazi, e pintava-se-me o retrato do ser criado à imagem e semelhança de Deus, o qual, quando não pactua ciclicamente com o diabo, o conhece todavia de ginjeira.

A persistência das minhas leituras, atravessando sucessivas estações etárias, oferecer-me-ia uma perspectiva que julgo valiosa, quer do conteúdo das centenas e centenas de volumes que fui desbaratando, quer também, e sobretudo, da simples natureza do acto de ler. E verifico que, se na infância percorria laboriosamente com o indicador as linhas dos contos de Andersen, ou das histórias tradicionais portuguesas, na adolescência derrubava espécie bibliográfica atrás de espécie bibliográfica com velocidade que se me afigura hoje quase miraculosa. E a idade adulta, honrada pelo convívio com Tolstoi e Dostoiewsky, Proust e Musil, Joyce e Virginia Woolf, espraiar-se-me-ia por dilatados momentos de detença num capítulo, num parágrafo, ou numa frase, em busca do efeito, da estrutura, ou da dinâmica, que pudesse aproveitar ao escritor que ia crescendo em mim.

Que matérias ando a frequentar na fase presente, que revisitas promovo, e como me saio de tais empresas? Para além do que me cai em cima, expedido pelos respectivos autores em original, ou em letra de forma, e que procuro acompanhar com a ânsia da nova descoberta, ou com a exaustão da paciência beneditina, gestos que os velhos sempre devem aos jovens, os últimos tempos testemunham em mim o apego crescente ao que galgou o prazo de validade que penaliza os artigos vulgares. Sem contar jornais e revistas, e pequenos achados de circunstância, preencho por exemplo as lacunas na imensa produção de Dickens, de Zola, ou de Melville, enveredo por um Thackeray de que me distraí, e abraço quanta biografia me entra pela casa adentro, isto porque, aí sim, é que percebe um novelista o quanto custa viver.

Mas as releituras a que me abalanço, e em passo mais ou menos de anjo, ou de lesma, bem diverso do que me assistia na juventude, saldam-se amiudadas vezes pelo sabor a decepção. Só os académicos com carta profissional, para quem o prazer da leitura claudica não raro perante a obrigação da autópsia, se manterão imunes a quejando desgosto. E adio entretanto o regresso a Emílio Salgari, receoso de que se me destrua a infância em tão arriscada aventura, e termino cristalizado na Cartilha Maternal, de João de Deus, por onde meu Pai aprendeu a ler, que me parece um livrinho bonito, e muito particularmente na página de abertura, a do A-E-I-O-U.