A agenda de Mário Claúdio

As Telenovelas

Mário Cláudio

9 janeiro 2013 17:36

9 janeiro 2013 17:36

A produção telenovelística com que nos brindam os magnos canais pátrios, desenhando um arco do consumo de massa que os estudos sociológicos têm negligenciado, sofre genericamente o anátema dos bem-pensantes, ou dos que se metem a intelectuais. Artigos de digestiva fruição, desfiam enredos verosímeis, interpretados por actores mais ou menos talentosos, e largando em suspenso, conforme mandam as boas regras do género, a continuação do folhetim. Mas não deixa de ser verdade que se revelam mais numerosas as vozes daqueles que presumem destacar-se de semelhante refugo cultural, classificando-o de inconveniente ao estatuto que se inventam, do que as de quantos na realidade concretizam a intenção de o fazer.

Um dia, já lá vão muitíssimos anos, surpreendi um vulto imenso da nossa intelligentsia, inimigo figadal de quejanda trastaria mediática, absorvido na intriga de um desses dramas brasileiros, acabados de surgir no nosso quotidiano, com empenhamento apenas equiparável ao que colocava na redacção dos seus escritos, os quais se acompanhavam frequentemente de não menos circunspectas intervenções em conferências, entrevistas e mesas-redondas. Estremeceu o homem como o pimpolho apanhado em flagrante delito de assalto ao boião da geleia, e justificou-se sem que eu lho pedisse com a necessidade de se colocar ao facto dos gostos da população do seu país, e dos motivos das respectivas opções, matérias de evidente importância científica. Procurei tranquilizá-lo com a confidência de que também eu, posto que de longe a longe, consentia em gastar diante do écran alguns minutos, a seguir as peripécias de uma ou outra das séries, mas sobretudo por imperativos do convívio familiar. Aquele paradigma da duplicidade fitou-me com espantada censura, e não se coibiu de me increpar com isto, "Como assim?, você pactua com horrores de tal quilate?, olhe que eu nunca o julgaria capaz!"

Veio a crise, décadas decorridas sobre este episódio da vida real, e dou comigo envolvido em iguais prevaricações, todavia isentas de qualquer complexo de culpa, susceptível de as ensombrar. Todas as noites, e a horas certas, enfardo as três novelas que o Brasil exporta para um dos canais generalistas, e sem cuidar de dolorosos remorsos, nem de disfarces inúteis. Nada como os achaques da idade, individuais e colectivos, para nos libertar da opinião alheia, e da observância da imagem com que desejaríamos que nos identificassem, cidadãos maduros, e no pleno gozo dos seus direitos cívicos, a recortar a figura imprescindível ao auto-respeito mínimo.

Estarei a baixar miseravelmente a fasquia da honra oficinal, equiparando-me aos escribas de romances histórico-policiais, e sobretudo às escribas de relatos obcecados com as turbulências do coração? Andarei a subtrair aos restos de cada jornada o precioso tempo que poderia aplicar à decifração das mais abstrusas composições do Pound, à reaudição atentíssima do Rituel, do Boulez, ou ao visionamento em DVD do último filme do Tarkovsky? Creio que não. Ofereço-me simplesmente o que me apetece na alienação global, e adopto o saudável princípio do "come e cala", ou do "toma lá que já jantaste", tentando digerir, deitadinho em frente do plasma do quarto, o eterno bife com batata frita e ovo a cavalo.