18 julho 2007 15:27
18 julho 2007 15:27
Chandni Chowk em Velha Deli
As ruas tornam-se estreitas com tanta gente, com tanto calor, com tanta humidade. Os passos são amortecidos por um leito de lixo. Um tapete acumulado ao longo de apenas um dia de vida urbana. Tudo se pode lançar ao chão. Não importa se é degradável ou ali permanecerá eternamente. O destino de todo o tipo de lixo é o mesmo: ser empurrado de esquina em esquina e reciclado pelo gado sagrado.
Vaca morta nas ruas de Osyan
Todos parecem ignorar a insalubridade. Caminham sem se preocuparem com o que se agarra aos pés, às calças, à franja do sari arrastado na pocilga humana. Vivem imunes ao cheiro do esgoto em que os animais sequiosos matam a sua sede. Nem as vacas, sagradas que são, auferem melhor vida. Quando não sucumbem de uma oclusão intestinal provocada por um saco de plástico de boa qualidade, fenecem numa diarreia profusa que lhes leva até a alma. Vida de esgoto. Os únicos sobreviventes de todo este trágico curro são as ratazanas que, noite feita, espreitam de todos os buracos onde se enfiaram durante o dia arregalando os olhos ao festim que as espera. O dia acaba e todos regressam a casa com a rua colada ao corpo pela poluição automóvel.
Jardim da Mesquita Jama em Velha Deli
De madrugada ouve-se um esfregar a vários tons. Gente que nasceu para tratar dos restos, do que sobra, do lixo dos outros, vai acumulando o lixo da véspera em pequenos montes. Outros virão e juntarão os montes. Outros ainda o empurrarão mais longe, contra um muro ou uma parede, onde passará o dia à mercê de quem se quiser alimentar dele. É gente que expia nesta incarnação os males do carma acumulado nas anteriores. São os Dalits. Os Intocáveis.
Qualquer bazar na Índia é uma festa para os sentidos. Mas os olhos acordam rapidamente das cores quentes da roupa ao ouvir todos os sons que a fisiologia humana é capaz de produzir. Isto é Ásia. São séculos inteiros de liberdade corporal. Aqui, tudo o que está a mais no corpo tem que sair. Repressão social não há. O mais frequente, senão a verdadeira banda sonora de toda a Índia, é o som cavernoso do expectorar. Todos ambicionam clarificar umas exaustas vias aéreas. O produto é lançado como nos concursos de quem consegue cuspir mais longe: com um ligeiro arquear para trás. Analisando de perto todos estes produtos, constata-se que de expectoração nem vestígios e que a amostra não passa de saliva ruminada. São amostras que se imiscuem no lixo do dia e que ajudam a criar a camada elástica que amortece os passos. E, quando os ouvidos começam por fim a filtrar este som, eis que surgem os odores exóticos a especiarias e a fruta fresca. Neste corredor de cheiros, exactamente entre a banca da fruta e a das especiarias surge o odor ácido da urina. Não importa o local, se é entre bens que se comem ou entre roupa que se veste. Está a mais no corpo e tem que sair.
Porco a alimentar-se na lixeira vizinha da Mesquita Dargah em Fatehpur Sikri
Ninguém atrasa o passo com o espanto. Aqui ninguém se deixa assombrar por estas ninharias humanas. São mil milhões. Muitos já perderam de vista o limiar da pobreza. Há coisas mais urgentes a resolver e higiene não será seguramente a primeira delas. No entanto, no dia em que esta preocupação existir, tudo o que estiver a mais continuará a ter que sair. Não importa onde.
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Bazar
Os bazares são locais onde se vê a sociedade em funcionamento, com os seus códigos de conduta e susceptibilidades. Na Índia o comércio não respeita nenhuma ordem especial como acontece noutros países. O primeiro a chegar instala a sua banca. É fácil ver roupa misturada com víveres e utensílios. Para o comprador torna-se mais difícil comparar preços e qualidade pois os mesmos produtos podem estar a várias bancas de distância.
O mercado monta-se na rua, na mesma rua que é habitacional e aberta ao tráfego automóvel. Carros e motociclos tentam romper a malha humana entre as bancas do comércio. Além destes, animais vagueiam à procura de alimento e, quando tentam as próprias bancas da fruta, são repelidos pelos proprietários.
Ao amanhecer tudo o que resta é o lixo da feira anterior. Vacas sagradas procuram algo para o pequeno-almoço enquanto se limpa a rua para o início de mais um dia de bazar.
Luís Mieiro,
médico