14 junho 2007 18:57
14 junho 2007 18:57
Amrit Sarovar, ou tanque do néctar, no Templo Dourado de Amritsar
Nem sempre há rótulos que se adequam a todos os conteúdos. O Sikhismo é um destes casos. Foram os próprios Gurus que rejeitaram a catalogação por esta ser contra o seu princípio de vida. Ser Sikh é ser crítico. Crítico de si mesmo, dos outros e do meio em que vive. Assim nasceu este conceito monoteísta, um híbrido confesso de Islão e Hinduísmo, um concubinato do melhor de ambos e uma feroz revolta contra o humilhante de cada um deles. O Sikhismo na Índia é como a sua própria distribuição geográfica: uma fronteira entre Islão e Hinduísmo, uma zona tampão entre o Paquistão islâmico e a Índia hindu.
Guru Nanak, o fundador, foi um dos homens mais viajados do seu tempo. Conheceu muitas realidades que só a estrada pode ensinar e regressou a casa revoltado com o mundo que o rodeava. Criticando o regime de castas hindu e os limites estanques do Islão foi cativando um rebanho de discípulos ou, como se diz em sânscrito, Sikhs. Sempre crítico, transmitiu aos Sikhs a sua lei fundamental: "Só há um Deus e o Seu nome é Verdade.". Por ele deve ser regida a vida dos Sikhs, tornando-os únicos por dentro. Guru Nanak quis mais. Quis que o interior se pudesse ver por fora, que os Sikhs tivessem uma identidade, que apenas vendo o invólucro se adivinhasse o que ali reside. Quis que além do baptismo, que consiste em beber o néctar sagrado, isto é, a água do tanque do Templo Dourado de Amritsar, se pudessem ver as insígnias. Deve um Sikh respeitar os cinco kakars ou marcas da identidade: kesha (não cortar o cabelo), kachha (um pequeno esticador), kara (uma bracelete de ferro), kirpan (um punhal de aço) e kanga (um pente).
Bawa Singh, à frente do lado esquerdo, juntamente com o seu grupo de peregrinos no Templo Dourado de Amritsar
É no Templo Dourado de Amritsar que se vê o Sikhismo em funcionamento. Peregrinos de todas as partes do mundo vêm aqui banhar-se e beber o néctar. Nenhum cortou alguma vez o seu cabelo. Consigo entender a utilidade dos restantes kakars mas este kesha é difícil de compreender.
Tarefa de peregrino: lavar a Parkarma, o passeio em volta do tanque do néctar sagrado
Converso com peregrinos sob as arcadas do Templo enquanto caem as primeiras chuvas da monção húmida. Bawa Singh veio da região do Gujarat com familiares e amigos. Uma entre muitas peregrinações durante a vida. A sua explicação à minha simples pergunta "Por que é que os Sikhs não podem cortar o cabelo?" lembra os próprios textos dos Gurus que, para dissertarem sobre a letra Z, começam sempre pelo A.
Ancião do grupo de Bawa Singh
"O cabelo é sagrado.", começa. Porquê? Numa religião em constante desenvolvimento, com fobia aos dogmas, todos os porquês são bem-vindos. "O cabelo sempre foi sagrado. Todos os profetas usavam o cabelo comprido.". Sugiro que essa seria a moda da época. Bawa contesta. "A mulher legítima de Abraão cortou-lhe um pouco do bigode como punição por adultério.". Exemplos de piedade e cabelos cortados não faltam na explicação de Bawa. Guru Nanak considera-o automutilação. "É destruir a imagem que Deus criou.". Talvez este seja o melhor argumento. Bawa acrescenta uma última justificação: "Quando cortamos uma árvore estamos a desequilibrar o meio ambiente. Também quando cortamos um cabelo estamos a perturbar o equilíbrio do nosso corpo".
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Lavar o Templo
O Templo Dourado de Amritsar é o local mais sagrado do Sikhismo, uma vez que é neste complexo que se encontra o Amrit Sarovar, ou seja, o tanque do néctar sagrado, utilizado em baptismos e ao longo da vida como purificador da alma.
Todos os dias chegam a este Templo trinta mil peregrinos de toda a Índia e do resto do Mundo. Devem os Sikhs visitá-lo pelo menos uma vez na vida. O Templo é uma comunidade em si mesmo. Dentro do complexo, além dos edifícios religiosos propriamente ditos, há cozinhas comunitárias, salas de jantar, quartos e dormitórios prontos a albergar mais de mil peregrinos e visitantes por noite. Tudo gratuito.
No centro do Amrit Sarovar encontra-se o Hari Mandir Sahib, o pavilhão dourado que deu o nome ao Templo, onde quatro sacerdotes lêem continuamente os textos sagrados dos Gurus.
É ao som destas leituras que os peregrinos executam uma das mais gratificantes tarefas religiosas: lavar a Parkarma ou o passeio que rodeia o Amrit Sarovar. Cada peregrino tem o seu balde. Dentro do tanque estão pessoas com preparação religiosa para encher os baldes. A função do peregrino é transportar o balde desde o tanque até à periferia do passeio onde os sacerdotes o despejarão.
É um rito diário que enche de alegria os peregrinos, preserva a higiene do espaço físico e ainda tem a vantagem de ser considerado altamente místico.
Um dos aspectos mais curiosos do Sikhismo é que não há diferença de estatuto entre sexos. Segundo o próprio Guru Nanak, a mulher não transporta nenhum pecado original nem tem o diabo no corpo. É possível ler-se no capítulo 85 do seu livro: "Da mulher é o nosso nascimento. Na matriz da mulher somos concebidos. Pela mulher são estabelecidas as nossas ligações ao mundo. Como é possível chamar 'mal' à mulher que dá à luz reis?".
Luís Mieiro,
médico