4 julho 2007 16:19
4 julho 2007 16:19
Ruas de McLeod Ganj
Hoje o Tibete vive exilado mas vive mais intensamente a terra natal que perdeu há quase sessenta anos que os seus residentes recém-chegados. Em McLeod Ganj criou a sua nova capital. Pelas colinas e vales do sopé dos Himalaias indianos florescem vilas, aldeias e comunidades. Todos refugiados. Todos fugiram de uma limpeza cultural tão proclamadamente iluminadora que a única luz que se viu foi a do fogo destruidor alimentado por séculos e milénios de saber acumulado. Todos fugiram, a cavalo ou a pé, e todos resgataram algo. Até as sagradas chamas eternas que ardem no Jokhang, em Lhasa, desde o século oitavo, foram carinhosamente trazidas até aqui. Tudo tem que ser resgatado porque tudo é único no Tibete. Foram as fronteiras naturais que lhe deram a paz de viver sem incómodo, sozinho, para si. Hoje resta apenas a memória do último dia em que viram o seu país.
Yunju estende a roupa no passadiço
Tashi Dorjee veio a cavalo em 1986. Era nómada mas nem a liberdade de vagabundear lhe foi poupada. Mal por mal, que seja uma vida entaipada mas com os seus. Inevitavelmente acabo por referir a minha passagem pelo Tibete há três anos. Os olhos do Tashi enchem-se de lágrimas. Quer saber o que é que eu vi, como é que se vive. Chama gente, amigos, monges. Alguns já vivem na Índia há tantos anos que o Tibete se diluiu no tempo. Os outros já cá nasceram e vivem de imagens construídas. Comum a todos, apenas um chão ao qual não podem chamar seu. Chegam três mil refugiados por ano a McLeod Ganj, mas olhar de inji (estrangeiro, em tibetano) é uma raridade. Exemplifico com a história do meu amigo Putchung Tsering (pequeno que traz a felicidade). Putchung tinha então 22 anos. Convidou-me para sentar num café tingido de negro pelo fumo do carvão. Não me ofereceu chá de manteiga de iaque por gentileza. No fim perguntou-me se gostaria de visitar a escola dele. Uma sala exígua onde sessenta pessoas se empurravam em traves de madeira. Uma sala que exalava um cheiro animal, fétido. Uma sala embutida num albergue de pedintes do templo, uns gritando a sua loucura, outros gemendo a sua febre. Também ali, não há insucesso escolar. A única diferença é que a porta do curral em que se estuda é a porta de saída para a vida com a qual não se nasceu.
Ton Tashi (esquerda) brinca com Sanju (direita)
Tashi leva-me para a sua casa num complexo de refugiados. Uma porta, um quarto, um canto onde se cozinha. É certo que a água não é canalizada e que as latrinas ficam a uma distância que a imperiosa urgência fisiológica não aguenta mas são casas. Yunju, a mulher, vai preparando momos para o jantar. Tashi serve-me chá. Ele traga avidamente whisky refundido. Ele e todos os outros que no passadiço esperam o fim do dia. Recita o seu mantra de vinte e um anos de exílio. Tem filhos prodigiosos, reincarnações de Lamas, acredita. Ton Tashi com seis anos pede-me que lhe dite palavras em inglês. Sanju, de três, sem saber por que o faz, copia as palavras que o irmão escreve sem erros. Tenzin, de dois meses, chora quando pressente o pai embriagado. De que lhe serve tanto prodígio se não tem como os arrancar destas quatro paredes que o sepultam.
Mais um trago de whisky.
Casa do Tashi, da esquerda para a direita: Yunju com Tenzin ao colo, Tashi, Ton Tashi e Pema, irmã de Yunju
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Mantras
Dispersos por todo o Ladakh, região montanhosa entre o Tibete e Caxemira, há mosteiros budistas tibetanos que preservam não só a religião como também a cultura tibetana.
Pelo isolamento e inacessibilidade de muitos destes mosteiros, ou gompas em ladakhi, desenvolveram-se pequenas aldeias à sua volta que nutrem de fé os locais e dão suporte logístico ao imaterialismo do tecto do mundo.
Em casa ou no mosteiro, o tempo é passado em oração. Mantras quilométricos são recitados horas a fio por turnos.
Este é o serão de uma senhora na sua cozinha. Enquanto a família janta, ela continua a recitar o conhecido mantra Om Mani Padme Hum girando, sempre em sentido horário, a sua roda de oração.
No mosteiro de Lamayuru, monges e noviços partilham a responsabilidade de manter sempre acesa a chama da récita. Uma passagem de testemunho.
Luís Mieiro,
médico